03 - A ESTAÇÃO
Em 1976 estávamos em
Sarandi-PR em visita aos meus avós italianos, oportunidade de rever alguns da
galera das algazarras no riacho, nos fundos do sítio de meu avô “Coisão”, lá no
“Barraco”, em Sansabel.
Ah!... Saudade dos
Natais onde se reunia quase toda a família para falar alto, beber vinho de
garrafão no almoço, chocolate quente à noite, comer muito macarrão, carne de
frango com polenta e esquecermo-nos do mundo!...
E no meu caso,
oportunidade de rever as primas da cidade!... Mas não entendam mal, é que eu
fui o único sobrinho por um bom tempo, pois as irmãs de minha mãe tiveram oito
filhas, isso sem considerar as muitas primas da família de meu pai. Somente
depois meus tios casaram e vieram outros seis filhos.
E naquela tarde
estávamos todos felizes na Estação de Trem de Sarandi, à espera da locomotiva
que vinha de Maringá e ao que sei iria até Ponta Grossa ou o Porto de
Paranaguá.
O esposo da irmã de
minha mãe, morador de outra cidade, comprara uma bicicleta, mas teve de ir até
a Estação Central em Maringá para embarcá-la. Os tios e as primas estavam ali
para rir e cantar, mas apenas eu deveria seguir de trem para a casa desse tio,
em alguma cidade antes de Apucarana. Seria a última vez antes de minha família
seguir para o Mato Grosso.
Foi nesse dia que
descobri que tinha vocação para cantar! Por algum motivo, entre uma risada e
outra, cantei: “Lady Laura, me leva para
casa, Lady Laura”. E todos gostaram
ainda mais que era um recente sucesso de Roberto Carlos. Então continuei: “me faça dormir, Lady Laura”.
Eu nasci no “Barraco de
Zinco” em Sansabel. Mas também tinha morado perto de Cambira, quando tinha
entre três e quatro anos. Lembro-me que moravam na casa grande os meus avós
italianos, os tios e tias solteiros e outra família de nome estranho. Foi por
isso que aos meus pais coube morarem numa pequena e velha tuia de armazenamento
de grãos. Mas e daí?!... Estava tudo maravilhoso!...
Mais abaixo da casa grande
existia um cercado para porcos, mas ali vivia apenas uma cabrita preta com dois
cabritinhos e ela fornecia o meu leite de todo santo dia. Era um gramado fino e
alto. Margeando a cerca, bem mais abaixo, chegava a um pequeno riacho e uma
ponte que dava acesso a outro sítio com uma carreira de eucaliptos e onde vivia
uma mulher benzedeira.
No sítio de meu avô, acima
da casa grande tinha uma pequena parreira de uvas e depois uns pés de bananas,
só depois o cafezal, difícil de cuidar, pois era um chão pedregoso com uma
praga de matinhos roxeados. Acima da tuia estavam muitos pés de manga e ao lado
a casa do sítio vizinho de uma velha espanhola.
Certo dia, várias crianças pequenas brincavam
atrás da tuia, tanto meninas quanto meninos, mas uma jovem acompanhava e
cuidava dos pequenos. O fato é que senti vontade de urinar e fiz ali mesmo, na
parede de madeira. Teve uma menininha que também sentiu vontade, mas foi
repreendida pela cuidadora, com a alegação de que não poderia em frente de
menino. E todos estranharam!...
– É que menino é diferente de menina!...
– Ué?!... Mas não somos iguais?...
– Não é não!... Menina não tem “pipi”...
– Mas como faz
“xixi”?... Deixa eu ver!...
E foi assim que
consegui a fama de sem-vergonha, por tentar tirar a calcinha de uma das menininhas!...
A cuidadora se apressou em contar a minha safadeza. Logo todos comentavam o
absurdo atrevimento!... Se nem tinha quatro anos e fazia isso, qual o futuro
desse menino?!...
Dez anos depois eu tinha quatorze anos e era um
menino muito respeitador!... Na verdade, até cauteloso com esses assuntos.
Tanto é assim que não fiz nada quando a jovem garota decidiu tomar banho de
mangueira, toda sorridente, nos fundos de sua casa na vila do D. E. R. lá em
Sansabel, enquanto eu e o Dedé estávamos bem perto, na trave direita do campo
de futebol, a fingir que jogava bola, mas a olhar a menina nua!... E tinha
apenas o espaçoso arame farpado a nos separar...
– Doidinha!... –
Exclamou o Dedé, morador da vila. – Tem banheiro dentro das casas!... Por que
ela toma banho aqui fora?...
Mas voltando aos quase
quatro anos, a reação dos adultos com a história da calcinha foi tão intempestiva
e o falatório foi tão grande que me deixou temeroso!... Imagino que deva ser assim
que se cria um trauma de infância.
Interessante que os adultos também adotam ações
temerárias, com consequências piores, mas não são cobrados quais as crianças.
Por exemplo, na semana seguinte o meu avô “Coisão” chamou o meu pai e falou:
– Você precisa deixar
de ser matuto!... Não vê onde anda sua mulher?... Ela está lá no bananal e você
querendo ir pescar?...
Esse dia mudou minha vida. Nunca mais seria a
mesma rotina bucólica de criança feliz e amada, pois meu pai jogou a enxada no
chão e foi conferir a história!
De fato, tinha um homem a conversar com a
Nizita, grávida de sete meses, no bananal!... Ele chegara sorrateiramente de
bicicleta e foi direto para o bananal, apesar de ser membro conhecido da
família. Quando a Nizita viu o meu pai, imediatamente falou:
– Girso, não é o que
você está pensando!...
Muito tempo depois, na páscoa de 2017, dentro
do carro na estrada de Tapira PR, a caminho de Sansabel, meu pai falou:
– Nem sei se convém contar essas coisas. Foi há
tanto tempo!...
– Bem... – Argumentei.
– Todos já morreram...
De fato, minha mãe falecera
em 2013 e o meu avô na década de 1980. Falei de inocente. Nem no maior devaneio
poderia imaginar que ele iria expor esses acontecimentos de 1965 no bananal!...
E de repente, tudo fez
sentido!... Finalmente eu compreendia tantas brigas, cenas de ciúmes, até as
origens das agressões que sofri em Monte Castelo em 1971!...
É lógico que a Nizita
explicou que apenas estava tentando resolver um conflito familiar que envolvia
outra irmã. Além do mais, estava grávida, portanto, jamais iria fazer tal
traição, mas meu pai não quis saber.
O tal sujeito
imediatamente foi embora para Cambira e meu pai voltou para a tuia, pegou as
poucas economias que trouxera do “Barraco de Zinco”, preparou a charrete e foi
atrás!... Não encontrou o parente, mas comprou um revólver e voltou para o
sítio a jurar matar o sujeito!...
– Já
passou Santa Mônica?... – Perguntou o meu pai em 2017 dentro do carro, após
voltar de um estranho transe. Passáramos Santa Mônica e já estávamos perto do ramal
7, quase a chegar em Sansabel. Mas as lembranças foram tão intensas que ele
simplesmente não viu!... E eu estava estupefato!... Aquilo sim era escândalo,
não a minha inocência em querer tirar a calcinha de uma menina por pura curiosidade
infantil!...
Em 2017, durante o tal
transe, meu pai também falou sobre um primo da Nizita e que circularam
conversas infundadas de que tal primo seria pai de um de seus cinco filhos, mas
meu pai explicou que não poderia ser, pois esse primo era estéril, conforme
exames feitos em 1976, justamente nessa visita antes de nossa mudança para o Mato
Grosso.
Contou que esse primo
foi para Curitiba e se casou com uma paraguaia muito bonita e não teve filhos,
por fim, mudou-se para Campo Grande MS. Depois fiz pesquisa e de fato existe
registro do sepultamento no Cemitério Cruzeiro do Sul, quadra 92, lote 92.
E lá em 1965, o meu avô
“Coisão” se deu conta da enorme encrenca que provocara!... Provavelmente queria
apenas resolver o envolvimento da outra filha sem precisar expor a situação.
Não imaginara que o meu pai, o mineirinho sossegado, teria tal reação!... A solução
para resolver a enorme confusão foi vender tudo em Cambira e voltar para a
região do “Barraco de Zinco”, onde vendera um sítio de vinte hectares e menos
de um ano depois, iria voltar para comprar outro de dez!...
Dias depois, ainda sem
entender tanta movimentação, notei o cobiçado martelo de meu pai em cima do armário
da cozinha. Alguns utensílios foram encaixotados para a viagem, mas a maioria
ainda estava nas prateleiras, entre eles, uma tigela abaixo do martelo!...
Era muita tentação
aquele objeto tão requisitado ali quase ao meu alcance!... Subi na cadeira,
passei para a borda do armário, estiquei-me todo para alcançar o martelo e de
repente, o armário caiu!... Foi um barulho medonho de pratos, xícaras e os
vidros das portas a quebrarem no chão!... Uma lasca de vidro entrou em minha
perna!... De tudo que estava no armário, sobrou intacto apenas a tigela, pois
caíra em meu corpo!...
Apesar da dor e
sangramento, fugi para o mangueiral. Sentei embaixo de um troco e fiquei a
chorar baixinho!... Mal vi o vulto da espanhola a me pegar no colo, pois logo desmaiei!...
Essa foi a última lembrança daquele sítio.
Na estação, nada de
chegar o trem. E diante desses e outros acontecimentos, naquele momento eu queria
apenas a simbólica inocência perdida de criança feliz, a achar que todos fossem
iguais!... “Me conta outra vez, Lady Laura”...
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
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Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores