quinta-feira, 7 de abril de 2022

00 - INTRODUÇÃO



INTRODUÇÃO

Alguns antigos escritores cultuavam o hábito de longas apresentações iniciais, onde mais exaltavam o ego do apresentador, quando não se perdiam em elogios vangloriosos ao autor, em detrimento ao objetivo principal: o livro!... O autor passa, o livro permanece.

Isso explicado, estimo ser breve, pois é igualmente deplorável autores que praticamente escrevem outro livro na Introdução!... Cansam a paciência do leitor!...

Estas são as MEMÓRIAS do menino esquecido pelas circunstâncias da vida, em seu universo infantil, em realidade igual a vivida por milhões de crianças ao redor do mundo, enquanto os responsáveis seguem uma rotina questionável em meio às contradições de suas atitudes.

Mostram quais foram os meus sentimentos e sensações sob a ótica infantil, mas relatadas por linguagem adulta. O objetivo é destacar as incoerências que poderiam ser evitadas, principalmente castigos físicos em detrimento a algum ensinamento.

Não são imaginárias. Aconteceram!... Todavia, por questões literárias, seria enfadonho explicar e detalhar as circunstâncias isoladas de cada acontecimento. Por exemplo, na narrativa número 10 - Frituras, eu realmente caí no tacho de gordura, cruzei o pasto tal qual relatado e minha avó mineira fez as recomendações para o castigo. Entretanto, foram em intervalos separados por dias ou meses.

Baseado neste critério, não obedeci a alguma sequência cronológica. Não é um diário, por isso, procurei juntar os assuntos afins. O período situa-se entre dois e dezesseis anos, mas precisei avançar no tempo para dar sentido ou complemento a algum relato.

Também precisei envelhecer para conseguir a empatia necessária e não me passar por criança perseguida ou em apontar supostos culpados, pois todos os envolvidos foram vítimas do padrão comum e tiveram seus motivos. Exceto quanto ao caso do cabo de vassoura em Monte Castelo, nunca tive maldade e mesmo neste caso, pouco tempo depois sofri o mesmo revés.

E alguma força superior ajudou-me a escrever, pois os assuntos foram revividos em minha memória de acordo com cada narrativa numa inexplicável sequência lógica como se já estivessem previamente escritos!... Em alguns casos, sequer com minha concordância. Por isso, escrevi as trinta e quatro narrativas em poucos dias!...

Além de propiciar reflexão quanto a critérios na educação infantil, na essência é uma obra literária!... Isso explicado, desejo a todos uma ótima leitura!

 

Campo Grande MS, 10 de janeiro de 2022

  

José Nunes Pereira Sobrinho.

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

01 - O CORCEL

01 - O CORCEL

“Meu pai não tinha educação, ainda me lembro, era um grande coração. Ganhava a vida com muito suor e mesmo assim não podia ser pior. Pouco dinheiro pra poder pagar todas as contas e despesas do lar”. (Titãs).

Ontem recebi a notícia sobre um menino supostamente raptado em Naviraí MS, mas algumas horas depois ele voltou. Acho que foi dar um "rolê".

Em minha infância, aos nove anos, eu saia de manhã e voltava à tardinha, com sede e fome, todo sujo de jogar bola no campinho de terra, mas estava tudo bem. Normal naquela época. Hoje em dia, nem pode deixar o portão aberto, quanto mais deixar criança sozinha na rua.

Lembrei-me de 1971 quando morei em Santa Cruz de Monte Castelo PR e um dia resolvi investigar porque passava tanto carro na rua de casa, se não era saída para nenhuma outra cidade, exceto alguma fazenda ao norte, apesar da existência do cinema duas quadras acima.

Segui as marcas de pneus deixadas na poeira e após uma curva à direita, andei uns dois quilômetros até próximo a saída para Loanda PR. Cheguei a uma vila cheia de sorridentes mulheres nas portas e janelas!... Na verdade, voltei para casa sem entender o mistério.

Tempos depois finalmente descobri!... Aquela vila tinha em toda cidade e com o apelido de ZBM!... Atualmente isso não existe mais. A internet ocupou a necessidade do espaço físico. Mas naquela época, por ser Zona de Baixo Meretrício, fico pensando no risco em aventurar-me àquele lugar, pois pedofilia sempre existiu. Só por Deus mesmo!...

No final de 1971 minha família voltou para a cidade vizinha onde nasci, Santa Isabel do Ivaí PR e cinco anos depois, quando morava perto de um grande matão conhecido como duzentos hectares, era comum pegar o facão de meu pai e se aventurar naquela floresta, algumas vezes, juntamente com uma galera, conhecedora daquela região de ponta a ponta, cada trilha, cada pé de jabuticaba!...

Conhecia também uma estradinha muito usada, a qual após uns cem metros terminava no nada, numa grande clareira circular no meio do mato!... E ao redor, em algumas sombras, as marcas de capim amassado para virar local de "safadeza". Tinha até nome: “Mocó”!

Um dia eu estava sozinho e resolvi verificar os ninhos de Assum Preto em uns pés de coco macaúba lá no final dessa estrada que cortava o tal duzentos hectares. E vi passar um belíssimo veículo, um Corcel vermelho novinho, coisa mais linda!... Dentro, um velho magro de bigode e uma sorridente mulher. Eles entraram na tal estradinha.

Minutos depois cheguei à entrada e “safadeza” não poderia ser algo bom, então peguei a maior pedra do bornal, coloquei no estilingue, mirei o céu na direção da clareira e atirei!... Em seguida escutei o pipoco da pedra a bater justamente em cima do carro!... Eu não acertava nem passarinho a dez metros, como foi acontecer de acertar o Corcel?...

E pensei: “Estou morto"! Sozinho na região, uns dois quilômetros de casa. Não tive dúvidas: Entrei no matão, pois conhecia uma trilha de pé de jabuticaba bem perto, cujo início do outro lado era menos de duzentos metros de casa!...

O coração quase saiu pela boca, mas o engoli de volta e desembestei qual louco pelo mato, nem as moitas de arranha-gato me pararam!... E até hoje fico pensando na maldade que fiz com o velho!...

A parte mais crítica estava por vir. Antes de chegar à saída, após quebrar cipó no peito por quase um quilômetro, resolvi examinar a situação na beira da rodovia que dava acesso a estrada do matão, pois chegara a uma trilha desconhecida de nossos mapas!...

Todavia, ao sair da mata, dei de cara com a maior águia que eu tinha visto na vida! Era enorme!... Estava em cima de uma árvore quase seca e ficou a me encarrar!...


De imediato pensei que o velho do Corcel era um bruxo e tinha se transformado em uma enorme águia para me pegar!... Deu até uma tremedeira nas pernas.

De repente, a enorme águia – deveria ser da espécie harpia – saltou em minha direção!... Ou o velho era um bruxo poderoso ou jogou uma praga tão grande que uma harpia de outro mundo veio me pegar!...

Minha salvação foi estar bem próximo da mata e voltei de imediato para a trilha!... A águia contornou a descida e seguiu em direção às fazendas do outro lado do matão. Acho que pegar bezerro era mais fácil!...

Ela deve ter visto o alvoroço de minha fuga e achou que seria alguma caça!... Imagino que humanos não fizessem parte de seu cardápio, mas diante da frustração de não ser um animal, avaliou que o menino gordinho até daria uma boa refeição, ainda mais por enganá-la!...

Aliás, tinha uma plantação esquisita nessa trilha, parecia milho novo, mas as folhas eram curtas e serrilhadas, nunca tinha visto esse tipo de milho. Além do mais, era uma plantação pequena, no meio do mato!... Coisa estranha e sem sentido.

Enfim, andei pelo matão mais uns quinhentos metros e cheguei à trilha da galera, onde o grupinho fizera uma cabana e hoje aparenta ser a sede de uma fazenda ou o aeroporto da cidade. E nada do velho.... Será que ele sofreu um infarto e morreu?...

Retornei para casa e por vários dias, além da escola, minha atenção foi unicamente jogar bola no areão da esquina de casa ou no campo de futebol da vila do D. E. R. – Departamento de Estradas e Rodagens.

Foi assim que perdi a graça em caçar. Isso até dezembro de 1976 quando minha família se mudou para Naviraí-MS e dois anos depois comprei uma espingarda de pressão. Fiz muitas caçadas no Córrego do Touro e nas fazendas próximas.

O motivo que me fez desistir do plano “dos dezessete” também me levou a trocar a espingarda por um gravador e encerrei esse ciclo!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

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MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

02 - A GUERRILHA

02 - A GUERRILHA

Era um garoto, que como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones. Girava o mundo, sempre a cantar, as coisas lindas da América!... (Engenheiros do Hawaii).

Perdi a graça, mas não o gosto!... E também é preciso esclarecer que “velho” era qualquer pessoa com mais de quarenta anos e o bruxo do Corcel não era um ancião, pois sequer tinha cabelos brancos.

O fato é que na quinzena seguinte coloquei o facão de meu pai na capa que eu mesmo costurara na máquina de costura de minha mãe, peguei o estilingue e voltei ao matão!

Era questão de honra! Como poderia acertar um carro a cem metros e não acertar nenhum mísero Tico-Tico a cinco metros?... Todavia, por precaução, para não confessar o pavor, resolvi que iria caçar no lado oeste, na região da estrada para Loanda PR.

Não era o domínio de minha atual galera, onde eu era o Zé Gordo. Aquelas bandas pertenciam à turma da região do ginásio de esportes, onde eu morara no início do ano e era conhecido como Zezé.

Além do mais, a rivalidade do pessoal de Santa Isabel do Ivaí nem de longe espelhava a hostilidade das quadrilhas de Santa Cruz de Monte Castelo!...

Ali sim a situação era sinistra! Chegavam a treinar Kung-Fu, andavam armados de cassetetes e lembro-me de uma batalha que testemunhei na quadra de esportes ao lado do colégio, onde cada grupo entrou por um portão e foi pedrada e estilingada para todos os lados!...

Não foi à toa que fui suspenso da escola por trinta dias por inocentemente levar uma faca no estojo, mas era apenas para apontar o lápis!... A garota da música americana me entregou!... A mesma que depois reencontrei lá em Naviraí, mas essa é outra história!... Infelizmente com tanta confusão entre os jovens, a Diretora não quis saber de meus argumentos.

Ela morava numa casa de esquina e eu na mesma rua, numa casa rosa, ao lado da casa do Alfredo, o filho de fazendeiro que havia me ludibriado a colocar em sua coleção o único carrinho de plástico que eu ganhara, após conhecer o Papai Noel.

Dias antes da suspensão, a Diretora colocou a cabeleira cheia de bobes na janela e aos berros reclamou de nossa algazarra na rua.

O Cacá baixou a cabeça e foi para casa, ainda mais que há pouco tempo o pai o deixara amarrado, sem roupas, num poste de balaústra, ao lado da casa da “educadora”, durante toda a noite!...

Ninguém fez nada.... Foi o castigo mais constrangedor que vi na vida. Nessas horas, cada um cuidava de sua vida e ninguém se intrometia.

O fato é que eu fiquei indignado e quando a Diretora reclamou de nossas brincadeiras, imediatamente mandei-a tomar “cuidado”, mas desconfio que ela escutou só a primeira sílaba...

E por isso, seria muita inocência depois esperar ela aliviar a minha barra por causa de uma singela faca de dez centímetros e que eu trocara por um estilingue com um menino de uma das quadrilhas!...

Eram vinte horas, chovia muito, mas eu permanecia firme entre a parede da casa e as goteiras, pois se entrasse, levaria uma surra pior do que o castigo do Cacá. Onde já se viu?!... Improperar a Diretora da escola!... Nesse dia eu aprendi que criança precisa ter palavra de honra, mas adultos não!... Enfim, depois eu conto essa história.

Em Monte Castelo, um dos líderes era filho do dono da loja de venda de baterias, bem na esquina perto da praça da Igreja Matriz. Algum tempo depois a família dele também veio para “Sansabel” e lhe perguntei:

– Qual o motivo de tanta rivalidade”?...

– Não sei. – Ele respondeu: – Simplesmente foi assim...

Em Sansabel a única rivalidade era no campo de futebol, de meu pessoal da região do D. E. R. (Letra por letra) – Departamento de Estradas e Rodagens, contra os carinhas da Vila do Sapo, lá na baixada do estádio municipal.

A região central do matão contava com muitos pássaros. Era comum avistar Sabiás, Bem-te-vis, Gralhas, Sanhaços, Alma de Gato, Pombas, Coleirinhas, até Periquitos e Papagaios. Mas fui logo encontrar um dos pássaros mais bonito! Era um Sanguinho, também conhecido como Sangue de Boi, por sua plumagem vermelha e preta, tipo camisa do time do Flamengo!...


Em casa existia um pequeno aviário. Não fora meu pai quem fizera. Já estava ali abandonado e arrebentado quando meu pai comprou a casa. E concertei as telas, reformei a portinha e até fiz uns poleiros. Faltava apenas uma ave de estimação para habitar o local, antes que minha mãe resolvesse encher com galinhas...

Na primeira vez que entrei no matão da região central, entre várias trilhas, optei por uma não longa e não demorou muito a deparar-me com uma enorme arapuca e uma Gralha Azul dentro!...

Imaginei que deveria ter dono, mas se deixasse a ave ali, certamente seria devorada por algum Lagarto!... Ao menos foi essa a justificava que encontrei para levar o belíssimo pássaro para casa!...

Naquela época não existia internet, mas as notícias circulavam rapidamente de boca em boca e não tardou o dono da arapuca, um rapaz bem mais forte, aparecer lá em casa!... Fiquei apavorado!... A gaguejar expliquei os meus motivos...

Mas ele foi muito legal, conversou tranquilo e levou a Gralha Azul. Até explicou que viajara para um sítio. Enfim, acho que se eu não a tivesse recolhido, de fato ela iria morrer!... O importante foi que recebi apoio para caçar naquela região, mas não poderia armar ou mexer em nenhuma arapuca.

E voltando ao Sanguinho, ele estava ali!... Bem na minha frente, dando azar... O instinto de caçador dominou, preparei o estilingue e pá!... Acertei!... Fui correndo pegar a presa!... Segurei-o na palma da mão, mas já não tinha a mesma beleza. Fiquei a procurar onde tinha acertado e a pensar: “Como pode ter nome de Sanguinho se nem sangrou”?...

Mas ao virar minha mão, tive a horripilante visão!... Não tinha sangue na palma da mão porque escorrera entre os dedos e encharcara o outro lado até perto do punho! Horrorizado, joguei-o ao chão!... E pensei: “Como pode um passarinho tão pequeno ter tanto sangue”?...

Voltei para casa muito arrependido e lavei várias vezes as mãos, mas de que adianta, se a lembrança marcante gravou na mente?... Definitivamente iria parar de caçar de estilingue!...

Ao menos naquele lado do matão, pois dias depois lá fui eu novamente, em busca de aventura para a região leste, nos lados da estrada do Mocó!... Mas por precaução, não segui a orla da rodovia e fiz a conhecida trilha por dentro do matão.

Nos dias anteriores a galera me aconselhou a não mais levar o facão, pois um grupo desconhecido tinha cortado o arame farpado da fazenda e deu um enorme trabalho ao fazendeiro recolher o gado.

Disseram que ele jurou “matar” quem ele pegasse com facão!... Mas como eu iria deixar o facão em casa, após tanto trabalho em costurar a capa?... E como iria andar por dentro do matão?... E se encontrasse uma cobra?... E se encontrasse algum outro bicho?...

Se já não bastasse o bruxo do Corcel, agora ainda tinha o tal fazendeiro!... E se fossem a mesma pessoa?... Será que o homem do Corcel cortou a cerca para me incriminar?... Enfim, exigia muita coragem encarar aquelas aventuras!... E de tanto pensar, acabei por atrair o que mais temia, pois ao colocar o pé na estrada, ao longe avistei uma Caminhonete C-10 e poderia ser o fazendeiro!...

Entrei no mato e novamente em desabalada carreira, até dar de cara com uma caixa de marimbondos!... Sofri várias picadas, mas a pior de todas, abaixo do olho, quase nariz, provocou inchaço a tal ponto de pouco enxergar, mesmo assim, consegui chegar à minha casa.

Naquela época eu estudava a 7ª série do 1º Grau, após pedir demissão nas Casas Pernambucanas, onde fiquei por um ano, pois meu pai avisou que iríamos de mudança para o Mato Grosso, cidade de “Viraí”, só que ele foi, não deu nada certo e voltou!... Depois foi novamente e nós ficamos numa longa espera de vários meses, no inesquecível ano de 1976.

Com o inchaço no rosto, não fiz o exame final e reprovei. Até existia a 2ª época em janeiro de 1977 para recuperar retardatários, mas no início de dezembro o meu pai voltou!... Com isso, no dia 16 do mesmo mês fomos todos para Naviraí MT, hoje MS!... Enfim, nova vida!

Não sem antes viajar para a despedida de parentes em Sarandi PR, onde enfrentei outra aventura surreal, ao viajar sozinho de trem, de noite, entre Maringá e Apucarana, sem saber ao certo em qual cidade deveria desembarcar!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

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MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

03 - A ESTAÇÃO

03 - A ESTAÇÃO

Em 1976 estávamos em Sarandi-PR em visita aos meus avós italianos, oportunidade de rever alguns da galera das algazarras no riacho, nos fundos do sítio de meu avô “Coisão”, lá no “Barraco”, em Sansabel.

Ah!... Saudade dos Natais onde se reunia quase toda a família para falar alto, beber vinho de garrafão no almoço, chocolate quente à noite, comer muito macarrão, carne de frango com polenta e esquecermo-nos do mundo!...

E no meu caso, oportunidade de rever as primas da cidade!... Mas não entendam mal, é que eu fui o único sobrinho por um bom tempo, pois as irmãs de minha mãe tiveram oito filhas, isso sem considerar as muitas primas da família de meu pai. Somente depois meus tios casaram e vieram outros seis filhos.

E naquela tarde estávamos todos felizes na Estação de Trem de Sarandi, à espera da locomotiva que vinha de Maringá e ao que sei iria até Ponta Grossa ou o Porto de Paranaguá.

O esposo da irmã de minha mãe, morador de outra cidade, comprara uma bicicleta, mas teve de ir até a Estação Central em Maringá para embarcá-la. Os tios e as primas estavam ali para rir e cantar, mas apenas eu deveria seguir de trem para a casa desse tio, em alguma cidade antes de Apucarana. Seria a última vez antes de minha família seguir para o Mato Grosso.

Foi nesse dia que descobri que tinha vocação para cantar! Por algum motivo, entre uma risada e outra, cantei: “Lady Laura, me leva para casa,  Lady Laura”. E todos gostaram ainda mais que era um recente sucesso de Roberto Carlos. Então continuei: “me faça dormir, Lady Laura”.

Eu nasci no “Barraco de Zinco” em Sansabel. Mas também tinha morado perto de Cambira, quando tinha entre três e quatro anos. Lembro-me que moravam na casa grande os meus avós italianos, os tios e tias solteiros e outra família de nome estranho. Foi por isso que aos meus pais coube morarem numa pequena e velha tuia de armazenamento de grãos. Mas e daí?!... Estava tudo maravilhoso!...

Mais abaixo da casa grande existia um cercado para porcos, mas ali vivia apenas uma cabrita preta com dois cabritinhos e ela fornecia o meu leite de todo santo dia. Era um gramado fino e alto. Margeando a cerca, bem mais abaixo, chegava a um pequeno riacho e uma ponte que dava acesso a outro sítio com uma carreira de eucaliptos e onde vivia uma mulher benzedeira.

No sítio de meu avô, acima da casa grande tinha uma pequena parreira de uvas e depois uns pés de bananas, só depois o cafezal, difícil de cuidar, pois era um chão pedregoso com uma praga de matinhos roxeados. Acima da tuia estavam muitos pés de manga e ao lado a casa do sítio vizinho de uma velha espanhola.

Certo dia, várias crianças pequenas brincavam atrás da tuia, tanto meninas quanto meninos, mas uma jovem acompanhava e cuidava dos pequenos. O fato é que senti vontade de urinar e fiz ali mesmo, na parede de madeira. Teve uma menininha que também sentiu vontade, mas foi repreendida pela cuidadora, com a alegação de que não poderia em frente de menino. E todos estranharam!...

– É que menino é diferente de menina!...

– Ué?!... Mas não somos iguais?...

– Não é não!... Menina não tem “pipi”...

– Mas como faz “xixi”?... Deixa eu ver!...

E foi assim que consegui a fama de sem-vergonha, por tentar tirar a calcinha de uma das menininhas!... A cuidadora se apressou em contar a minha safadeza. Logo todos comentavam o absurdo atrevimento!... Se nem tinha quatro anos e fazia isso, qual o futuro desse menino?!...

Dez anos depois eu tinha quatorze anos e era um menino muito respeitador!... Na verdade, até cauteloso com esses assuntos. Tanto é assim que não fiz nada quando a jovem garota decidiu tomar banho de mangueira, toda sorridente, nos fundos de sua casa na vila do D. E. R. lá em Sansabel, enquanto eu e o Dedé estávamos bem perto, na trave direita do campo de futebol, a fingir que jogava bola, mas a olhar a menina nua!... E tinha apenas o espaçoso arame farpado a nos separar...

– Doidinha!... – Exclamou o Dedé, morador da vila. – Tem banheiro dentro das casas!... Por que ela toma banho aqui fora?...

Mas voltando aos quase quatro anos, a reação dos adultos com a história da calcinha foi tão intempestiva e o falatório foi tão grande que me deixou temeroso!... Imagino que deva ser assim que se cria um trauma de infância.

Interessante que os adultos também adotam ações temerárias, com consequências piores, mas não são cobrados quais as crianças. Por exemplo, na semana seguinte o meu avô “Coisão” chamou o meu pai e falou:

– Você precisa deixar de ser matuto!... Não vê onde anda sua mulher?... Ela está lá no bananal e você querendo ir pescar?...

Esse dia mudou minha vida. Nunca mais seria a mesma rotina bucólica de criança feliz e amada, pois meu pai jogou a enxada no chão e foi conferir a história!

De fato, tinha um homem a conversar com a Nizita, grávida de sete meses, no bananal!... Ele chegara sorrateiramente de bicicleta e foi direto para o bananal, apesar de ser membro conhecido da família. Quando a Nizita viu o meu pai, imediatamente falou:

– Girso, não é o que você está pensando!...

Muito tempo depois, na páscoa de 2017, dentro do carro na estrada de Tapira PR, a caminho de Sansabel, meu pai falou:

– Nem sei se convém contar essas coisas. Foi há tanto tempo!...

– Bem... – Argumentei. – Todos já morreram...

De fato, minha mãe falecera em 2013 e o meu avô na década de 1980. Falei de inocente. Nem no maior devaneio poderia imaginar que ele iria expor esses acontecimentos de 1965 no bananal!...


E de repente, tudo fez sentido!... Finalmente eu compreendia tantas brigas, cenas de ciúmes, até as origens das agressões que sofri em Monte Castelo em 1971!...

É lógico que a Nizita explicou que apenas estava tentando resolver um conflito familiar que envolvia outra irmã. Além do mais, estava grávida, portanto, jamais iria fazer tal traição, mas meu pai não quis saber.

O tal sujeito imediatamente foi embora para Cambira e meu pai voltou para a tuia, pegou as poucas economias que trouxera do “Barraco de Zinco”, preparou a charrete e foi atrás!... Não encontrou o parente, mas comprou um revólver e voltou para o sítio a jurar matar o sujeito!...

– Já passou Santa Mônica?... – Perguntou o meu pai em 2017 dentro do carro, após voltar de um estranho transe. Passáramos Santa Mônica e já estávamos perto do ramal 7, quase a chegar em Sansabel. Mas as lembranças foram tão intensas que ele simplesmente não viu!... E eu estava estupefato!... Aquilo sim era escândalo, não a minha inocência em querer tirar a calcinha de uma menina por pura curiosidade infantil!...

Em 2017, durante o tal transe, meu pai também falou sobre um primo da Nizita e que circularam conversas infundadas de que tal primo seria pai de um de seus cinco filhos, mas meu pai explicou que não poderia ser, pois esse primo era estéril, conforme exames feitos em 1976, justamente nessa visita antes de nossa mudança para o Mato Grosso.

Contou que esse primo foi para Curitiba e se casou com uma paraguaia muito bonita e não teve filhos, por fim, mudou-se para Campo Grande MS. Depois fiz pesquisa e de fato existe registro do sepultamento no Cemitério Cruzeiro do Sul, quadra 92, lote 92.

E lá em 1965, o meu avô “Coisão” se deu conta da enorme encrenca que provocara!... Provavelmente queria apenas resolver o envolvimento da outra filha sem precisar expor a situação. Não imaginara que o meu pai, o mineirinho sossegado, teria tal reação!... A solução para resolver a enorme confusão foi vender tudo em Cambira e voltar para a região do “Barraco de Zinco”, onde vendera um sítio de vinte hectares e menos de um ano depois, iria voltar para comprar outro de dez!...

Dias depois, ainda sem entender tanta movimentação, notei o cobiçado martelo de meu pai em cima do armário da cozinha. Alguns utensílios foram encaixotados para a viagem, mas a maioria ainda estava nas prateleiras, entre eles, uma tigela abaixo do martelo!...

Era muita tentação aquele objeto tão requisitado ali quase ao meu alcance!... Subi na cadeira, passei para a borda do armário, estiquei-me todo para alcançar o martelo e de repente, o armário caiu!... Foi um barulho medonho de pratos, xícaras e os vidros das portas a quebrarem no chão!... Uma lasca de vidro entrou em minha perna!... De tudo que estava no armário, sobrou intacto apenas a tigela, pois caíra em meu corpo!...

Apesar da dor e sangramento, fugi para o mangueiral. Sentei embaixo de um troco e fiquei a chorar baixinho!... Mal vi o vulto da espanhola a me pegar no colo, pois logo desmaiei!... Essa foi a última lembrança daquele sítio.

Na estação, nada de chegar o trem. E diante desses e outros acontecimentos, naquele momento eu queria apenas a simbólica inocência perdida de criança feliz, a achar que todos fossem iguais!... “Me conta outra vez, Lady Laura”...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

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04 - A VIAGEM

04 - A VIAGEM

“Quem vai chorar? Quem vai sorrir? Quem vai ficar? Quem vai partir? Pois o trem está chegando, está chegando à estação. É o trem das sete horas, é o último do sertão”! – (Raul Seixas).

Finalmente o trem chegou!... Ninguém chorou. Mas a maioria continuava a sorrir. Contudo, embarquei sozinho e na longa viagem de minha vida, na sina de menino esquecido, fui acumulando memórias, tanto as boas, quais pequenas flores a acalentar a esperança, quanto as ruins, pois me ensinaram a desviar-se de certas pedras do caminho!...

Embarquei!... Os demais ficaram na estação e logo seguiram seus destinos. Cada um na eterna rotina de casar, ter filhos, envelhecer e até esquecer-se de pequenas alegrias como se nunca aconteceram!... Ou em caso pior, fazerem ameaças caso vejam o prenome em alguma dessas narrativas.

Estou em Campo Grande MS há quase trinta anos, mas sei que existe outro “José Nunes Pereira Sobrinho” em Londrina PR, outro em Bertioga SP, idem no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro RJ e vários no Nordeste do Brasil. Ou seja, sequer sou dono de meu nome completo, menos ainda do prenome José!...

Mas em consideração a de quem se sinta dono de prenomes, os poucos citados em todas as minhas narrativas são fictícios. Achei por bem também evitar alguns prenomes de falecidos, caso não sejam essenciais, pois e se resolverem “voltar” para questionarem?!...

Aliás, o nome foi a minha primeira aventura. Incomodado em ser chamado de “Zé”, questionei:

– Mãe, com tantos nomes no mundo, por que escolheram José?...

– Não escolhemos. – Ela explicou. – Na verdade, seu pai escolheu “Valtamir”. Mas depois de oito dias de sofrimento na tentativa de parto, com cólicas e contrações infindáveis, até a parteira, dona Rosita, lá da baixada do riacho, ficou desanimada....

– Sua avó Jovelina, – Prosseguiu minha mãe. – também não sabia o que fazer para manter a esperança em nascer vivo. E lá no sítio de seu avô Eurico eu não tinha mais condições de percorrer os vinte quilômetros de carroça naquela estradinha cheia de buracos e lama até o hospital em Sansabel...

– Felizmente minha mãe, sua avó Marcelina, veio nos visitar e contou que sonhara que seu nome era José e que só iria nascer se colocássemos esse nome!...

– Então seria Valtamir?... Ah!... – Exclamei conformado. – José é um nome bonito!... É até bíblico!...

Antes de seguirmos para a estação, o meu pai foi taxativo: Eu deveria embarcar e imediatamente sentar! Não sair do lugar de forma alguma!... O meu tio iria embarcar em Maringá após acomodar a bicicleta e depois de passar a estação de Sarandi ele percorreria os vagões até me encontrar. Era um plano infalível!...

Escureceu. O trem não era rápido. Mesmo assim, logo depois consegui identificar o letreiro da Estação de Marialva e nada de meu tio aparecer!... Achei que ele estivesse a brincar com a minha situação. Sinceramente, não tinha a menor graça!... Por que adulto acha que criança não entende nada ou não tenha sentimentos e pode sofrer qualquer tipo de brincadeira?...

Mas se era um teste de paciência, então paciência. Fiquei a recordar a infância. Lembrei-me do sítio e dos cabritinhos! E da espanhola a me carregar nos braços e estimo depois a delicadamente lavar os cortes. Achei que meu pai me “mataria” por ter quebrado todos os pratos e xícaras do armário!... Mas ele estava tão obcecado com a história do homem do bananal que nem ligou!...

Muito antes disso, na recordação mais antiga, vejo minha mãe lavando roupa numa prancha estirada até ao chão. Uma bacia de alumínio ao lado direito em cima de uma mesinha. Ao redor algumas plantas ornamentais roxas e longas quais pés de milho. Mais à esquerda um pé de pinha. Abaixo um pé de laranja. Eu estou na esquina da casa, com quase dois anos, calmamente sentado num saco branco, sob a sombra do laranjal.


Era essa a calma que eu queria, enquanto o trem seguia em frente!... Mas ao contrário, na escuridão mal dava para ver as poucas moradias em sítios na beira dos trilhos e nada de meu tio!... Passamos a Estação de Mandaguari e foi um sufoco conseguir ler a identificação. Até tive de desobedecer e mudar para o lado direito, pois as estações estavam sempre à direita, exceto a de Sarandi!

O desespero maior era pela incerteza quanto ao nome da estação em que deveria desembarcar, caso o meu tio não aparecesse, ainda mais quando me lembrei de conversas sobre uma sociedade numa fábrica de muros pré-moldados na cidade de Jandaia do Sul!...

Já passara das vinte horas e a aflição era tamanha que todas as memórias sumiram! Minha vida estava restrita ao rigor daquele momento dentro do trem!... Tudo se resumia a dúvida cruel: Deveria descer na próxima estação?...

Pouco depois o trem parou em Jandaia do Sul e eu ainda sem saber o que fazer!... Olhei pela janela e não vi o meu tio. Talvez não seria ali, pois se fosse, certamente ele teria desembarcado. Desço ou não desço?... E se não for Jandaia?... Cheguei a levantar, mas quem primeiro saiu foi o trem!... Então fiquei numa agonia pior a que enfrentara quando acertei o Corcel vermelho, lá em Sansabel!...

Seria Cambira?... Cambé?... Cambará?... A meu ver, os nomes eram tão similares, ainda mais sob o tormento da ansiedade!... Por outro lado, a única certeza era que quanto mais eu seguisse, mais longe estaria de Sarandi!... E isso foi fundamental em minha decisão de descer na próxima estação!...

Quando o trem parou, a curta estação estava bem mais à frente de meu vagão. Não pensei duas vezes. Pulei sobre as pedras ao lado do trilho. O trem deu partida e fiquei na expectativa de ver o meu tio, pois talvez ele não pudesse sair do lado da bicicleta e estava contando que eu fosse esperto o suficiente para descer na estação correta. Mas estava tudo vazio. Ninguém!... Nenhuma outra alma viva!...

E agora?... O que fazer?... Caminhei em direção à estação e lá estava o letreiro: Cambira!... Do lado esquerdo a fraca iluminação permitia ver apenas a ribanceira e plantações de café, então era evidente que deveria subir à direita, onde estavam as casas da cidade!... E após duas ruas encontrei dois rapazes. Pedi ajuda. Expliquei que deveria chegar à casa de uma tia, cujo nome correto eu não lembrava, pois sempre falei o apelido usado em família, mas lembrei-me que ela costurava roupas!...

Eles me levaram à casa de uma Costureira, não muito longe. Batemos palmas. Logo saiu uma gentil senhora e decepcionado com o primeiro fracasso, expliquei a situação. Infelizmente ela não conhecia aquele apelido familiar. Senti um desespero!... E se eu estava na cidade errada?... Seria por isso que meu tio não estava na estação?!...

– Qual o nome de seu tio?... Perguntou a mulher.

– É Ciclano!... Falei cheio de esperança.

– Também não conheço. – Ela lamentou e questionou:

– Qual o sobrenome?...

Poxa vida! Como não pensei isso antes?!... É lógico que as famílias são mais conhecidas do que nomes individuais! De fato, foi só falar o sobrenome e tudo clareou!...

– Ah! Conheço sim! – Falou a Costureira. – Basta seguir essa rua até passar o campo de futebol. Eles moram na terceira casa!...

Agradeci e fui feliz da vida!... Não estava perdido! Aquela era a cidade correta!... Entretanto, logo descobri que não era a casa de minha tia.... Mas sabiam o endereço exato! Conheciam até o apelido! Indicaram o endereço e quase dez horas da noite eu bati palmas na frente da casa de minha tia!...

Ela acordou desconfiada, abriu a porta e exclamou assustada:

– Zezinho?!... É você?... Cadê a Nizita?...

– Oi tia! – Falei eufórico. E rapidamente contei a minha recém-aventura.

– Está com fome? – Ela perguntou ainda incrédula.

– Entra!...

Rapidamente ela esquentou arroz, feijão e carne com batatas! Foi uma das melhores refeições de minha vida! E antes de terminar, irrompeu porta adentro o meu tio e logo depois o meu pai! Eles vieram de ônibus!...

Somente então fiquei sabendo que a estação em Maringá não aceitara embarcar a bicicleta, pois deveria estar encaixotada!... E meu tio pedalou de volta os dez quilômetros até Sarandi na esperança de chegar a tempo, isso com o intenso trânsito na rodovia!... Infelizmente não foi possível e eu já tinha embarcado!... Ah!... Que falta fazia um celular!...

Depois desse dia eu me senti emancipado e pronto para a nova vida no então Mato Grosso! Porém, antes foram inúmeras as aventuras, por exemplo, o código secreto com minha mãe, mas tão secreto que nem ela sabia!... E segundo esse código, toda vez que minha mãe me proibisse enfaticamente de fazer alguma coisa, era para fazer o inverso!...

Foi assim que cai dentro do tacho de gordura quente...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

05 - O FACÃO

05 - O FACÃO

Miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes. Índios, mulatos, pretos ou brancos, miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes. (Titãs).

Quando meu pai resolveu deixar a fartura do sítio e se aventurar com a esposa e filhos na desconhecida vida da cidade, não foi assim tão surpreendente, pois todos os filhos mais velhos do “Padinho” – forma carinhosa qual chamávamos o meu avô Eurico – tinham alçado esse mesmo voo em direção ao que eles estimavam ser a liberdade daquela vida atribulada, sem perspectivas.

A tataravó de minha avó saiu de Minas Gerais e foi para o Rio de Janeiro, isso lá pelos anos de 1780. Naquela época, por aqueles lados, cidade grande era Salvador, na Bahia, a capital do Brasil, ou então Vila Rica, sede da governança de Minas Gerais. Ela também tinha na veia o espírito aventureiro, além da habilidade como Costureira e assim chegou à futura capital do país.

E quase ao final da década, notou a grande quantidade de “mineiros” que fluíam para aquele próspero Porto de São Sebastião do Rio de Janeiro e sua grande enseada, pois era o caminho mais seguro e rápido, tanto para chegar à capital Salvador, quando para levar os metais preciosos para Portugal.

Perspicaz e boa cozinheira, ela mudou de atividade e fundou o talvez primeiro restaurante mineiro em terras cariocas: O “Restaurante Mineiro da Perpétua”! Logo fez um grande sucesso, tanto que o Governador de Minas, o Visconde Luizinho, quando deixava Vila Rica a negócios com destino ao porto do Rio de Janeiro, fazia questão de saborear sua culinária.

Infelizmente não foi apenas da comida que ele gostou... Enamorou-se perdidamente por Perpétua e a fez sua amante, coisa normal naquela época onde os homens ditavam os costumes morais e sociais, relegando às mulheres cozinhar e procriar. Sentimentos?... Como assim?... Quem ligava!

Mas quis o destino que pouco tempo depois chegasse à cidade o Quinzinho, após pedir baixa do posto de Alferes na cavalaria imperial. Esse sim era um legítimo brasileiro, trabalhador sofrido, desde quando ficara órfão aos onze anos e teve de aprender com o tio a hábil atividade de Dentista, depois Minerador, Tropeiro, Comerciante, até Farmacêutico medicinal de ervas, por fim Militar, já que conhecia tão bem os minérios preciosos e caminhos da região.

Era solteiro. Na verdade, viveu muitos anos com a Mariazinha, em Vila Rica, com quem teve filhos, mas sem chegarem a casar. Por fim, após influência de líderes religiosos, militares de elevada hierarquia e ricos fazendeiros, dizem que até a maçonaria, rebelou-se contra a massacrante cobrança de impostos destinados a reerguer a cidade de Lisboa em Portugal, recém-destruída por um terremoto. Mariazinha temeu pelos filhos e isso provocou o rompimento da união conjugal. Ela ficou com a casa, documento passado em Cartório e nos anais do Brasil. Quinzinho foi para o Rio de Janeiro.

Ah!... A saudade da comida mineira!... Foi isso que provocou o encontro de Quinzinho e Perpétua! E foi amor à primeira vista! Embriagaram-se de felicidade por quase dois anos e fizeram eternas juras de amor!... Planos de retornarem lá pelos lados do sertão da Bahia, onde ninguém iria reconhecê-los e construiriam uma moradia de sol e luz, onde caberia uma imensa família feliz!...

Mas o fazendeiro Silverinha, muito conhecido de Quinzinho, tanto da época em que ambos foram garimpeiros, quanto de atividades militares onde era Major, pois o Silverinha diante de suborno em perdão de dívidas, delatou ao Governador Luizinho todo o insurgente grupo mineiro, quais traidores da Coroa Portuguesa, ainda mais com as recentes notícias da nova República dos Estados Unidos da América!

Luizinho já sabia que Perpétua fizera a repugnante afronta de trocá-lo pelo Quinzinho e imediatamente ordenou a prisão de todos os que estavam em Vila Rica!... Tal notícia logo se espalhou e Quinzinho tentou obter informações e ajuda justamente de Silverinha, o qual engendrou a dupla traição e Quinzinho foi preso no Rio!...

Posteriormente, todos os rebeldes foram julgados e a maioria condenados à morte!... Todavia, os padres, os militares, os ricos e poderosos receberam o perdão da Rainha de Portugal, desde que deixassem o Brasil. E por influente vontade do agora Conde Luizinho, somente Quinzinho permaneceu condenado à morte, por ter falado a verdade, por ser brasileiro, pobre, humilde, pouco estudo, mas talvez ousar ser feliz com a Perpétua!...

Ele foi enforcado, degolado, esquartejado e as partes deixadas na estrada entre o Rio e Vila Rica para que todos vissem o que acontece com quem tenta se rebelar contra o poder do Rei!...

Na mesma tarde da execução, Perpétua esteve na macabra praça e encontrou o lenço que dera a Quinzinho, onde bordara as iniciais: JJSX. Não fora apenas a morte da liberdade, fora um atentado ao amor!...

No dia seguinte Perpétua deixou o Rio de Janeiro e foi em busca dos raios de sol, lá no sertão de Minas Gerais, divisa com a Bahia, onde teve filhos e filhas. E por tradição mineira, os filhos receberam o sobrenome do pai, as filhas receberam o sobrenome da mãe e assim sucessivamente de geração em geração. Quem duvidar basta pesquisar na internet por “Perpétua Mineira”!

Entretanto, há outra versão, segundo a qual a maçonaria muito trabalhou nas engrenagens do poder, ao ponto de convencer a Rainha do suposto mal-entendido, pois a queixa não era contra Portugal e sim quanto a intensidade na cobrança de impostos.

E nisso criou-se um impasse, pois o Conde Luizinho de Barbacena, Vice-Rei, ficaria desmoralizado caso a Rainha perdoasse a afronta feita por Quinzinho, como se Perpétua fosse sua propriedade.

Mas a maçonaria encontrou uma solução!... Convenceram um ladrão condenado à morte a substituir Quinzinho na execução, mediante juramento de que seus filhos receberiam o amparo vitalício e assim foi feito!...

No dia seguinte, Quinzinho e Perpétua embarcaram para Portugal, onde cumpriram o exílio de dez anos, depois voltaram ao Brasil e tiveram muitos filhos!...

Por um caminho ou por outro, a tradição se cumpriu e assim nasceu a minha avó, Jovelina Perpétua da Silva, a qual casou-se com Eurico Nunes Pereira, herdeiro de muitas terras lá em Espinosa-MG e sul da Bahia, filho único além de uma irmã. Minha avó teve 16 filhos, uma partiu cedo demais, mas os demais, filhos e filhas, cresceram e constituíram famílias, espalhadas por este imenso Brasil!

E a “Madinha”, qual a chamávamos, mesmo sem Crisma ou Batismo para legitimar a primazia, mulher firme e guerreira a honrar o sobrenome de Perpétua, muito lamentou ao saber que meu pai iria abandonar o único sítio que sobrara no sertão do Paraná de todas as riquezas de Minas!...

Ele pretendia colocar a família numa carroça e com os poucos bens, mas muita esperança e confiança em Deus de dias melhores, simplesmente se aventurar na cidade!...

Pois eis que minha avó Jovelina Perpétua, para amenizar os possíveis percalços, além de uma plaina para alisar madeiras, deu ao meu pai algo muito precioso que trouxera lá de Minas Gerais, um antigo facão!...


Lá em Minas, ela encomendara a um conhecido e hábil Ferreiro que fizesse um facão de uma mola de caminhão. Ele esquentou e bateu naquela mola até afiná-la, depois a deixou no prumo, por fim, fez a têmpera e o corte afiado!

Meu pai recebeu de bom grado o significativo presente e foi para a cidade, malgrado a contrariedade de meu avô, pois agora sobrara apenas um genro para cumprir as atividades exigidas no sítio.

Não foi ingratidão de meu pai. E nisso tive alguma participação, pois quando estava prestes a completar sete anos, ao invés de um presente ou a promessa de frequentar a escola, recebi de presente uma pequena enxada, para também capinar na roça!... E no dia seguinte, subi com o meu pai para o cafezal para cumprir a triste sina.

Nos dois anos anteriores meu serviço tinha sido todo dia levar o almoço para o meu pai lá no morro do cafezal. Mas naquele dia tivemos de levar nossas marmitas logo ao amanhecer.

Na hora do almoço, sentamos embaixo de um pé de café e eu estava numa tristeza de dar dó. Nem queria comer, ainda mais que a comida estava bem fria. Meu pai pegou uma faca e começou a cortar um tronco de café. Foi lapidando até formar um pião e me deu de presente! Finalmente despertou-me um sorriso!...

Imagino que isso mexeu com sua coragem e perspectivas, pois naquele dia ele resolveu se mudar para Sansabel e assim ganhou de presente o facão, o qual depois eu ganhei e guardo com muito carinho, qual relíquia de minha avó Perpétua!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

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MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores