quinta-feira, 7 de abril de 2022

23 - A ESCOLA

23 - A ESCOLA

O ano de 1971 iniciou com um grande problema!... Era preciso me matricular na escola, mas certamente o colégio de freiras de Sansabel não iria confirmar o término da 1ª série, pois sequer frequentei o último bimestre!... Nos anos seguintes, minha mãe cuidou deste departamento, mas naquele caso, restou a meu pai a incumbência da matrícula, pois ele criara a situação!...

Fomos ao Colégio Santos Dumont e meu pai solicitou a atendente me matricular na 2ª série. Logicamente ela solicitou os documentos, inclusive, o histórico escolar onde constaria a conclusão da 1ª Série. Mas meu pai explicou que recém chegara à cidade e não tinha nenhum documento da escola anterior. A Secretária perguntou:

– De onde o Senhor veio?...

– Vim de Espinosa. – Respondeu o meu pai. – Fica lá no norte de Minas, quase Bahia...

– Nossa!... É muito longe daqui!...

– Pois é... – Respondeu o meu pai. – Mas o menino sabe ler e escrever!... Pode fazer um teste!...

– Hum... Vou falar com a Diretora. Por favor, aguarde uns minutos.

Naquela época nada era informatizado e poucas repartições públicas contavam com a primazia de um simples aparelho telefônico!... Exatamente para resolver problemas semelhantes, o Governo editou uma Portaria autorizando a excepcional matrícula, desde que o aluno fizesse uma prova de competência, mediante aval da Diretora da escola.

– Precisa melhorar a caligrafia... – Disse a Diretora, após analisar a prova. – Mas certamente ele é alfabetizado!... Pode matricular na 2º série.

Portanto, não perdi o ano anterior e retomei os estudos, mas no Colégio Soldado Constantino, um pouco mais distante, pois não havia salas disponíveis no Santos Dumont e fez-se uma extensão de sala de aula, prática comum naquela época.


A vida seguiu sua rotina enfadonha, tipo o dia em que entrei na caixa de bueiro do esgoto e resolvi passar pelo tubo estreito até a caixa no outro lado da rua. O inesperado aconteceu, pois fiquei entalado na areia acumulada!... Se chovesse, morreria afogado!... Se não conseguisse sair, morreria de fome e sede, pois estava no meio da rua, quase dois metros abaixo do nível do solo e ninguém escutaria meus gritos!... Não dava para voltar, somente permitia seguir em frente!... Seria mais uma criança desaparecida e apenas outro bueiro entupido. Por fim, respirei fundo, mantive a calma, raspei a areia com as mãos e consegui chegar ao outro lado!...

Teve também o dia em que a Diretora da Escola saiu aos berros na janela de sua casa, a reclamar de nossa algazarra na rua. Com toda a educação que me era peculiar, mandei-a tomar “cuidado”!... Aprendi com o meu pai. Ele tinha essa mania. Qualquer coisa mandava tomar “cuidado”. Ela não gostou e foi uma confusão terrível!... Fez um escândalo!... Chamou minha mãe e falou horrores!... Eu logicamente fiquei na rua a tarde inteira. Jamais entraria em casa ou deixaria minha mãe me bater!... Preferia morrer de fome!...

Logo escureceu e por azar, começou a chover. Fiquei em pé na beira da parede, enquanto os pingos salpicavam o chão e estilhaçavam sobre meu corpo. Estava frio. Meu pai chegou cansado da oficina e não falou nada. Tomou banho, jantou, escutou as infindáveis lamentações de minha mãe e quando a chuva diminuiu, quase oito horas da noite, foi até a quina da casa e falou:

– Venha para dentro!...

– Eu não quero apanhar!... – Respondi.

– Não vamos lhe bater!... Pode entrar!...

– Promete?...

– Prometo!... Entra logo pois quero dormir!...

Entrei primeiro no banheiro, na área da lavanderia, um pouco antes da porta da cozinha. Meu pai entrou em seguida com o cinto em mãos e me aplicou a segunda pior surra de minha vida!... E a dor maior não era das cintadas, era pela quebra da promessa, pois dias antes minha mãe me fizera ajoelhar e jurar nunca mais mentir!... Então é isso?... Criança tem de falar a verdade, não pode xingar, deve manter suas promessas, mas para adultos é tudo diferente, depende da ocasião!...

Enfim, rotina e mais rotina. Ou o dia em que a menina me pediu o apontador de lápis emprestado. Mas eu usava uma faquinha para apontar o lápis. Então gentilmente ofereci a opção. Ela ficou horrorizada com a faca!... Fez um escarcéu!... Imediatamente a velha Professora me encaminhou à diretoria lá na outra escola. Fui suspenso por trinta dias!...

A Professora morava na mesma rua, umas cinco quadras de distância. Acho que ela ficou sem entender o motivo de tanta severidade. Na verdade, sempre conversava comigo e estimava-me por um bom menino. Talvez por isso, no período de suspensão, quase todos os dias me visitava, passava a matéria do dia, quais tarefas deveria fazer e até aplicou as provas!... Foi um anjo naqueles dias turbulentos!... Porém, quando iniciou o segundo semestre ela finalmente aposentou. A Diretora colocou no lugar uma jovem Professora.

Nas férias Escolares de Julho, nada para fazer, resolvi vistoriar os muitos pés de frutas do quintal. A jabuticabeira e as goiabeiras davam os melhores frutos no final do ano, então nada encontrei. Mas no pé de amora, vi apenas um fruto rechonchudo, vinho escuro, no ponto de colher!... Examinei a situação. Tinha um galho mais grosso abaixo e dava para caminhar por ele até o local da amora. O problema é que esse galho fazia uma pequena curva e de tanto cuidado para não mexer desastrosamente no galho de cima e derrubar a amora, descuidei e pisei em falso no galho abaixo!... Despenquei justamente na depressão por onde escorria a enxurrada nos dias chuvosos!... Quebrei os dois ossos da tão castigada perna direita!...

Não tinha aparelho de radiografia em Monte Castelo, então meu pai me levou de táxi para Loanda. Eu fui de perna para cima, morrendo de dor, xingando e reclamando o tempo todo!... Fomos atendidos no hospital do Dr. Hugo. Quando ele forçou para colocar os ossos em seus lugares, antes de colocar o gesso, foi uma dor absurda!... Saíram “sapos e lagartos” de minha “boca suja” contra o velho médico que apenas riu!...

Quem chorou foi o meu pai, quando recebeu a conta para pagar!... De onde tiraria dinheiro para pagar aquela despesa?... Por fim, lembrou-se de minha avó Jovelina e foi para Sansabel pedir a ela um empréstimo do valor. Levou meses até ele conseguir devolver. Enquanto isso, voltamos para Monte Castelo e justamente no veranico brasileiro, período entre julho e agosto quando o inverno desaparece e faz muito calor!... Lembro-me bem deste detalhe, pois tinha dias em que a coceira era insuportável!... Dava vontade de enfiar um ferro entre a pele e o gesso!...

Fiquei quarenta dias com a perna engessada. Nem era preciso esperar tanto tempo, mas meu pai não tinha dinheiro para me levar à Loanda apenas para retirar o gesso. Nesse período as aulas retornaram e para minha surpresa, passei a receber a visita da nova Professora!... Não sei se teve alguma orientação específica da Diretora, talvez alguma recomendação da antiga, o fato é que cheguei a fazer novas provas ainda com o gesso!...

Por fim, quando eu já estava caçando borboletas pelo quintal com uma peneira e pulando com uma perna só feito o Saci Pererê, finalmente meu pai entendeu que deveria ele mesmo retirar o gesso!... Trouxe uma serrinha da oficina e com todo o cuidado serrou o gesso por completo!...

A perna estava praticamente um palito, pois todos os músculos atrofiaram!... Levou meses para recuperar a musculatura e a fisioterapia foi ir a pé à escola todos os dias!... Um passo de cada vez e nos primeiros dias precisava parar para descansar, tamanha era a dor e cansaço!... Levava quase uma hora para fazer o trajeto de menos de mil metros.

Será que deveria confessar que isso novamente aconteceu uns quinze anos depois, quando fui mexer no forro e despenquei da cadeira que estava em cima da mesa?... Bati o joelho esquerdo na quina da mesa e decepou um nervo!... Andei pausadamente de muletas vários dias, após a imperfeita cirurgia de reconstituição. Até hoje o nervo ciático provoca horríveis dores nas costas e por saber a verdadeira origem, passo alguma pomada na cicatriz na perna e qual mágica, somem as dores nas costas!...

Ou melhor nem contar que quarenta e cinco anos depois desabei de um telhado e quebrei o pé direito!... Teve de colocar três parafusos!... Ao menos eu já sabia quanto a dor em colocar o osso no lugar e eu mesmo segurei o pé totalmente torto e o forcei de volta!... Quase desmaiei de tanta dor!...

E em 1971 quando tudo parecia perdido e sem boas expectativas na malograda aventura na vida na cidade, eis que o primeiro patrão de meu pai em Sansabel veio a Monte Castelo e fez uma irrecusável oferta de emprego!... Ele dobraria o atual salário, daria casa de graça para morar e meu pai seria o Torneiro Mecânico chefe da oficina!...

Lógico que meu pai aceitou!... Minha mãe não se coube de tanta felicidade, pois poderia rever seus queridos e saudosos familiares lá do sítio quando viessem à cidade!... Apenas eu teria de novamente abandonar a escola sem terminar a 2ª série, mas nessas alturas, ninguém estava nem aí comigo, exceto a Diretora!... Não é que ela ficou triste e até me deu a minha primeira calça Jeans e da marca Lee?!... E assim voltamos para Sansabel, depois de tantos sofrimentos no fatídico ano de 1971 em Santa Cruz de Monte Castelo!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

  

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