quinta-feira, 7 de abril de 2022

15 - O NATAL

15 - O NATAL

“Então é Natal!... E o que você fez”?... (Simone).

Em dezembro de 1967, além da visita de minhas primas de Alto Paraná, lembro-me dos três dias de agonia de minha mãe antes do nascimento de meu irmão. E de certa forma, também minha penitência, pois era obrigado a ficar do lado de fora, a brincar na areia entre o ranchinho e o laranjal...

É claro que essa já era a minha rotina de todos os dias, mas o fato de ser proibido de entrar em casa deixava-me sobremaneira inquieto! E finalmente no dia 16 nasceu o Claudinei!...

Na época, o irmão mais novo de meu pai recebera a visita de sua noiva e ficaram a namorar, sentados num banco embaixo do laranjal, ao lado da casa onde ocupariam após o casamento. Riam e conversavam baixinho. Quando muito, entrelaçavam as mãos!... E antes de me cortar na virilha, ao brincar com a enxada, fiquei a imaginar: “Então isso que é namorar”?...

Eu não mais lembrava como seria uma festa de Natal, pois quando voltamos de Cambira em 1965 sequer teve comemoração e antes era muito pequeno. E no ano seguinte continuou o trabalho intenso, principalmente no sítio de meu avô italiano, tanto ao desmanchar a casa grande, muito longe da estrada, quanto em reconstruí-la bem mais acima, longe do riacho, já que a água era farta a partir de poços não profundos, mas também em iniciar o plantio e gerar renda.

Finalmente em dezembro de 1967 toda a família italiana novamente se reuniu!... Vieram os tios e tias de vários lugares, sempre nos tradicionais veículos Jeep, além daqueles que já moravam na região. Uma alegria inimaginável!... Muita conversa, muito vinho, infindáveis partidas de truco, pescarias no rio Ivaí ou Taquara. Buscar melancias no cafezal. No lado feminino, infindáveis novidades a contar!...

E entre as crianças, muitas primas!... Se não considerar meu irmão recém-nascido, eu ainda era o único neto e não dava para se enturmar entre as meninas, no fim, ficava a brincar com os meus tios, na rotina de sempre, em pescar e nadar no riacho, quebrar e comer a castanha de coco macaúba, pegar uva japonesa perto do riacho, beber água de mina no sítio vizinho ou correr atrás de borboletas amarelas, algumas azuis ou as monarcas que se reuniam em círculos na areia úmida para contarem experiências de vida!...

No geral, meu vestuário era um rústico calção, sem camisa e descalço. Em situações especiais vestia uma simples camisa feita por minha mãe e calçava um chinelo de pano marrom feito de cordas, chamado de alpargatas. As minhas primas da região variavam apenas na estampa florida. Mas as primas da cidade...

Ah!... Eram delicadas, em vestidos composto de vários tecidos, sandálias coloridas, cabelos cortados, unhas limpas, até sabiam falar palavras difíceis!... E quando sentávamos lado a lado nas poltronas marrom na área da casa perto do acesso a cozinha, parecia um idílio de amor!... Tudo isso em minha cabeça, pois para elas, eu era um caipirinha querendo aparecer. Devia colocar uma melancia no pescoço...

Não era na véspera e sim no dia de Natal o grande almoço de comemoração!... Entre a casa grande e a varanda onde ficavam o poço, o batedor de roupa e o banheiro com tanquinho de latão para usar como chuveiro, havia um espaço de cerca de três metros. Ali colocaram por cima um encerrado para proteger de intempéries e abaixo juntaram várias mesas lada a lado para a comunhão em família!... E até hoje fico a imaginar de onde tiraram tantas mesas!... Desconfio que o batedor de arroz que me arrancou a unha estava ali...

Descobri que o Natal era muito bom, pois até ganhei um presente!... Algo maravilhoso e inquebrável!... Não era tal qual aquele carrinho de madeira que meu pai fizera com esmero e me dera quando era filho único, o qual adorei de paixão, mas logo quebrou... Era um sensacional revólver pequeno e vermelho de uma substância fantástica chamada plástico!...

Contrataram até fotógrafo!... Mas não eram fotos em papel. Eram monóculos. Uma espécie de cineminha de plástico em forma de cone, com lente na ponta fina redonda e o filme na parte quadrada nos fundos. Mas ao colocar contra a luz e rente a um olho, mostrava a preservação mágica do momento da foto!...

Festa com muita macarronada e carne de frango, além de muitas bebidas, todas devidamente servidas dentro de uma rígida escala, sendo sodinha para as crianças pequenas, tubaína para as crianças maiores, cerveja ou vinho para os adultos e mulheres, por fim, cachaça para os velhos. Aliás, os velhacos, pois pegavam a sodinha dos pequeninos e misturavam com cachaça e bebiam!...

E num desses monóculos eu apareço sentando bem à frente, com os meus tios e toda a família feliz aos fundos!... Ao menos eu deveria aparecer, mas na imagem mais aparece um borrão vermelho em frente ao rosto, pois apontei o tal revólver para a câmera no momento da foto!...

Na ausência de sodinha, meus tios me deram um copo de vinho tinto para beber!... Acho que eles queriam ver o que eu iria fazer se ficasse bêbado!... Se sóbrio já instalava o terror, o que faria embriagado!... Talvez pensassem que eu iria refugar ao sentir o gosto do álcool!... Mas em minha presunção de quase seis anos, eu estimava que era um homem e bebi todo o conteúdo de uma vez só!...

A festa continuou para todos, mas minha cabeça começou a rodar, rodar... Nem sentia mais os pés no chão!... Depois veio uma sonolência absurda e tropegamente cheguei ao gramado de pequeninas margaridas amarelas com folhas verde musgo, ao lado da casa de uma das tias, pois ali estava uma convidativa sombra!...

Deitei de bruços e lembro-me de escutar um estranho ruído bem sinistro... Virei-me e constatei que abaixo das flores tinha cacos de garrafas e um deles quase decepou minha perna direita na altura do joelho!... O sangue escorria pelos dois lados do corte!...

Gritei horripilado e isso chamou a atenção de quase todos!... A maioria ficou abismada ao ver o meu joelho cortado!... Não faltou quem falasse que para cortar daquele jeito, deveria ter caído da janela, onde certamente entrara para surripiar!... Impossível deixar cortar até aquele ponto sem notar!... Só se caísse da janela!...

Foi uma confusão enorme!... Colocaram-me sentado sobre um tronco usado para cortar lenha nas proximidades. Eu estava sereno. De repente, dei-me conta que não seria normal ficar tão quieto. Comecei a chorar!... E foi estranho porque eu não sentia nenhuma dor, pois estava anestesiado pelo álcool!....

E meus tios?... Nem se fossem torturados contariam que me deram vinho. Nessas alturas a parceria acabara e ficou cada um por si. Por fim, alguns adultos arrumaram umas faixas e estancaram o sangramento.

Fiz a proeza de acabar com o Natal tão esperado!... O exterminador de Natal!... Quem morava por perto foi embora. Meus pais voltaram para o sítio do avô mineiro, ao menos fomos em um dos veículos.

O corte foi exatamente de cinco centímetros e sei disso porque ainda tenho a enorme cicatriz. Seria mais, caso minha perna fosse mais grossa. E quantos pontos levei?... Nenhum!...

Não me levaram para o hospital na cidade. Tinha ao menos dois carros na festa, mas a decepção por estragar o Natal foi tamanha que ninguém se lembrou. Castigo merecido. Talvez minha mãe, mas ela estava preservada num quarto a cuidar de meu irmão recém-nascido e mal foi informada do incidente. Apenas que me machuquei. Coisa normal no meu caso.

Talvez meu pai não tivesse dinheiro para pagar o hospital, pois a boa safra de café ainda estava a florir e ele somente recebeu uma boa quantia no ano seguinte.

Depois minha avó Jovelina fez umas compressas com ervas e enfaixou minha perna. Ao menos a cada dois dias precisava renovar as ervas, entre elas, o mentruz ou Erva de Santa Maria. Nos primeiros quinze dias parecia que iria infeccionar tudo!... A cada vez que desenfaixava a aparência estava pior, além do mais, por ser no joelho, naturalmente a pele se distanciou e o corte estava sempre aberto.

Um mês depois, véspera de completar seis anos, finalmente consegui andar os cinquenta metros que separavam o ranchinho e a casa da irmã de meu pai, casada com um primo de minha mãe. Eles tinham filhos e filhas e eram a minha turminha de convivência no sítio.

Lembro-me nitidamente de estar sentado na porta da cozinha, a qual não era nos fundos e sim no lado em direção a casa grande. Então tirei a faixa. Apareceu a carne esbranquiçada e amarelada. Peguei um raminho de vassoura e enfiei dentro. Minha prima, companheira da tarefa de levar o almoço aos nossos pais, falou:

– Que nojo!...

E aos poucos foi cicatrizando, bendito mentruz ou Erva de Santa Maria, sempre pelos extremos do corte, até resultar em apenas duas feridas, as quais também secaram e sumiram. Mas a enorme cicatriz ficou.

 

“Então é Natal!... E o que você fez”?... (Simone).

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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