15 - O NATAL
“Então é Natal!... E o que você fez”?...
(Simone).
Em dezembro de 1967,
além da visita de minhas primas de Alto Paraná, lembro-me dos três dias de
agonia de minha mãe antes do nascimento de meu irmão. E de certa forma, também
minha penitência, pois era obrigado a ficar do lado de fora, a brincar na areia
entre o ranchinho e o laranjal...
É claro que essa já era
a minha rotina de todos os dias, mas o fato de ser proibido de entrar em casa deixava-me
sobremaneira inquieto! E finalmente no dia 16 nasceu o Claudinei!...
Na época, o irmão mais
novo de meu pai recebera a visita de sua noiva e ficaram a namorar, sentados
num banco embaixo do laranjal, ao lado da casa onde ocupariam após o casamento.
Riam e conversavam baixinho. Quando muito, entrelaçavam as mãos!... E antes de
me cortar na virilha, ao brincar com a enxada, fiquei a imaginar: “Então isso
que é namorar”?...
Eu não mais lembrava como
seria uma festa de Natal, pois quando voltamos de Cambira em 1965 sequer teve
comemoração e antes era muito pequeno. E no ano seguinte continuou o trabalho
intenso, principalmente no sítio de meu avô italiano, tanto ao desmanchar a
casa grande, muito longe da estrada, quanto em reconstruí-la bem mais acima,
longe do riacho, já que a água era farta a partir de poços não profundos, mas
também em iniciar o plantio e gerar renda.
Finalmente em dezembro
de 1967 toda a família italiana novamente se reuniu!... Vieram os tios e tias de
vários lugares, sempre nos tradicionais veículos Jeep, além daqueles que já
moravam na região. Uma alegria inimaginável!... Muita conversa, muito vinho,
infindáveis partidas de truco, pescarias no rio Ivaí ou Taquara. Buscar
melancias no cafezal. No lado feminino, infindáveis novidades a contar!...
E entre as crianças,
muitas primas!... Se não considerar meu irmão recém-nascido, eu ainda era o
único neto e não dava para se enturmar entre as meninas, no fim, ficava a
brincar com os meus tios, na rotina de sempre, em pescar e nadar no riacho,
quebrar e comer a castanha de coco macaúba, pegar uva japonesa perto do riacho,
beber água de mina no sítio vizinho ou correr atrás de borboletas amarelas,
algumas azuis ou as monarcas que se reuniam em círculos na areia úmida para
contarem experiências de vida!...
No geral, meu vestuário
era um rústico calção, sem camisa e descalço. Em situações especiais vestia uma
simples camisa feita por minha mãe e calçava um chinelo de pano marrom feito de
cordas, chamado de alpargatas. As minhas primas da região variavam apenas na
estampa florida. Mas as primas da cidade...
Ah!... Eram delicadas,
em vestidos composto de vários tecidos, sandálias coloridas, cabelos cortados,
unhas limpas, até sabiam falar palavras difíceis!... E quando sentávamos lado a
lado nas poltronas marrom na área da casa perto do acesso a cozinha, parecia um
idílio de amor!... Tudo isso em minha cabeça, pois para elas, eu era um
caipirinha querendo aparecer. Devia colocar uma melancia no pescoço...
Não era na véspera e
sim no dia de Natal o grande almoço de comemoração!... Entre a casa grande e a
varanda onde ficavam o poço, o batedor de roupa e o banheiro com tanquinho de
latão para usar como chuveiro, havia um espaço de cerca de três metros. Ali
colocaram por cima um encerrado para proteger de intempéries e abaixo juntaram
várias mesas lada a lado para a comunhão em família!... E até hoje fico a
imaginar de onde tiraram tantas mesas!... Desconfio que o batedor de arroz que
me arrancou a unha estava ali...
Descobri que o Natal
era muito bom, pois até ganhei um presente!... Algo maravilhoso e
inquebrável!... Não era tal qual aquele carrinho de madeira que meu pai fizera
com esmero e me dera quando era filho único, o qual adorei de paixão, mas logo
quebrou... Era um sensacional revólver pequeno e vermelho de uma substância
fantástica chamada plástico!...
Contrataram até
fotógrafo!... Mas não eram fotos em papel. Eram monóculos. Uma espécie de
cineminha de plástico em forma de cone, com lente na ponta fina redonda e o
filme na parte quadrada nos fundos. Mas ao colocar contra a luz e rente a um
olho, mostrava a preservação mágica do momento da foto!...
Festa com muita
macarronada e carne de frango, além de muitas bebidas, todas devidamente
servidas dentro de uma rígida escala, sendo sodinha para as crianças pequenas, tubaína
para as crianças maiores, cerveja ou vinho para os adultos e mulheres, por fim,
cachaça para os velhos. Aliás, os velhacos, pois pegavam a sodinha dos
pequeninos e misturavam com cachaça e bebiam!...
E num desses monóculos
eu apareço sentando bem à frente, com os meus tios e toda a família feliz aos
fundos!... Ao menos eu deveria aparecer, mas na imagem mais aparece um borrão
vermelho em frente ao rosto, pois apontei o tal revólver para a câmera no
momento da foto!...
Na ausência de sodinha,
meus tios me deram um copo de vinho tinto para beber!... Acho que eles queriam
ver o que eu iria fazer se ficasse bêbado!... Se sóbrio já instalava o terror, o
que faria embriagado!... Talvez pensassem que eu iria refugar ao sentir o gosto
do álcool!... Mas em minha presunção de quase seis anos, eu estimava que era um
homem e bebi todo o conteúdo de uma vez só!...
A festa continuou para
todos, mas minha cabeça começou a rodar, rodar... Nem sentia mais os pés no
chão!... Depois veio uma sonolência absurda e tropegamente cheguei ao gramado
de pequeninas margaridas amarelas com folhas verde musgo, ao lado da casa de
uma das tias, pois ali estava uma convidativa sombra!...
Deitei de bruços e
lembro-me de escutar um estranho ruído bem sinistro... Virei-me e constatei que
abaixo das flores tinha cacos de garrafas e um deles quase decepou minha perna
direita na altura do joelho!... O sangue escorria pelos dois lados do corte!...
Gritei horripilado e
isso chamou a atenção de quase todos!... A maioria ficou abismada ao ver o meu
joelho cortado!... Não faltou quem falasse que para cortar daquele jeito,
deveria ter caído da janela, onde certamente entrara para surripiar!...
Impossível deixar cortar até aquele ponto sem notar!... Só se caísse da
janela!...
Foi uma confusão
enorme!... Colocaram-me sentado sobre um tronco usado para cortar lenha nas
proximidades. Eu estava sereno. De repente, dei-me conta que não seria normal
ficar tão quieto. Comecei a chorar!... E foi estranho porque eu não sentia
nenhuma dor, pois estava anestesiado pelo álcool!....
E meus tios?... Nem se
fossem torturados contariam que me deram vinho. Nessas alturas a parceria
acabara e ficou cada um por si. Por fim, alguns adultos arrumaram umas faixas e
estancaram o sangramento.
Fiz a proeza de acabar
com o Natal tão esperado!... O exterminador de Natal!... Quem morava por perto
foi embora. Meus pais voltaram para o sítio do avô mineiro, ao menos fomos em
um dos veículos.
Não me levaram para o
hospital na cidade. Tinha ao menos dois carros na festa, mas a decepção por
estragar o Natal foi tamanha que ninguém se lembrou. Castigo merecido. Talvez
minha mãe, mas ela estava preservada num quarto a cuidar de meu irmão
recém-nascido e mal foi informada do incidente. Apenas que me machuquei. Coisa
normal no meu caso.
Talvez meu pai não
tivesse dinheiro para pagar o hospital, pois a boa safra de café ainda estava a
florir e ele somente recebeu uma boa quantia no ano seguinte.
Depois minha avó Jovelina
fez umas compressas com ervas e enfaixou minha perna. Ao menos a cada dois dias
precisava renovar as ervas, entre elas, o mentruz ou Erva de Santa Maria. Nos
primeiros quinze dias parecia que iria infeccionar tudo!... A cada vez que
desenfaixava a aparência estava pior, além do mais, por ser no joelho,
naturalmente a pele se distanciou e o corte estava sempre aberto.
Um mês depois, véspera
de completar seis anos, finalmente consegui andar os cinquenta metros que
separavam o ranchinho e a casa da irmã de meu pai, casada com um primo de minha
mãe. Eles tinham filhos e filhas e eram a minha turminha de convivência no
sítio.
Lembro-me nitidamente de estar sentado na porta
da cozinha, a qual não era nos fundos e sim no lado em direção a casa grande.
Então tirei a faixa. Apareceu a carne esbranquiçada e amarelada. Peguei um
raminho de vassoura e enfiei dentro. Minha prima, companheira da tarefa de
levar o almoço aos nossos pais, falou:
– Que nojo!...
E aos poucos foi cicatrizando, bendito mentruz
ou Erva de Santa Maria, sempre pelos extremos do corte, até resultar em apenas
duas feridas, as quais também secaram e sumiram. Mas a enorme cicatriz ficou.
“Então é Natal!... E o que você fez”?...
(Simone).
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN: 978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
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quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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