07 - A TIGELA
Quem um dia irá dizer
que existe razão nas coisas feitas pelo coração?... E quem irá dizer que não
existe razão?... (Legião Urbana).
Embarcamos no Jipe e
deixamos Cambira. Na verdade, um comboio de três Jipes e um caminhão nas
poeirentas estradas até Maringá, depois Nova Esperança, Paranavaí, Planaltina e
por fim Sansabel, em quase três longos dias para transportar as famílias e a
pouca mobília da época.
Eu ainda sentia as
dores do ferimento na perna, mas dificuldade maior recaia sobre minha mãe, naquele
mês de novembro de 1965, não apenas pelos recentes problemas com o meu pai ou
os exigentes cuidados na amamentação da primeira filha, mas principalmente por
causa da enorme barriga, situação que preocupava a todos!... Por isso, fiquei
esquecido na intrépida jornada e até desconfio que a tenha feito em cima do
caminhão, com os meus tios.
Meu avô italiano era
bem sagaz. Vendera um sítio de vinte hectares e agora voltava para outro de
dez, mas com uma significativa diferença: Antes era sócio com mais dois irmãos,
agora seria dono único!...
E contava com dois
filhos adultos para terminarem de desmatar e construírem uma nova casa mais
perto da estrada, pois a antiga estava na baixada do riacho nos fundos da
propriedade.
Infelizmente a meu pai coube
retornar ao sítio do avô mineiro, em situação pródiga e humilhante, tanto que
não pode ocupar à antiga casa onde nasci, a qual estava prometida ao filho mais
novo, quando casasse. Mas nem seria possível, pois em novembro de 1965 era
temporariamente habitada por uma das filhas recém-casada, a qual depois foi com
o marido para Rondônia.
Havia outra casa, também
em boas condições, a qual antes era ocupada pela família do irmão parceiro de
meu pai em todas as atividades e empreitadas, até na tentativa de formação de
uma dupla sertaneja.
E coube a esse irmão
tocar o sítio quando meu pai foi embora. Entretanto, ele também desistiu e foi
para Guarulhos SP, onde virou Marceneiro. E essa outra casa, em situação
similar a primeira, estava ocupada por outra filha, por coincidência, casada
com um dos filhos de um irmão do avô italiano.
No fim, os parentes
construíram um ranchinho para a família de meu pai, com paredes de troncos
rebocadas com barro e capim, de chão batido como piso, cobertura de telhas de
madeira cortada do tronco de coqueiros macaúba. Tinha apenas dois cômodos: Uma
cozinha e o quarto para os dois adultos, o casal de filhos e mais uma a
caminho.
Depois de construída, meu avô mineiro chegou a
cavalo, olhou a precariedade do ranchinho, mas ainda rancoroso e magoado, fez
pouco caso e falou:
– É!... Para qualquer
bagual serve!...
Quarenta anos depois eu
voltei ao local. A casa onde nasci não existia mais, apesar de um monte de
terra a indicar o local. A casa grande sequer tinha sinal. Idem quanto à outra
casa do irmão violeiro de meu pai. Mas o ranchinho ainda estava de pé! Era
garagem para uma carroça, mas estava firme e forte!...
Bagual é cavalo novo
recém domado. Meu pai engoliu em seco e ficou calado. Situação
desesperadora?... Nada disso! Meu pai estava muito satisfeito, pois voltara a
fazer o que gostava, tanto em caçar, quanto em pescar no riacho aos fundos do
sítio, fora aventuras no rio Ivaí ou no piscoso rio Taquara!...
Os meus tios italianos
até ironizavam ao dizer que bastava surgir uma nuvenzinha lá longe no céu e o
“Girso” largava a enxada e ia pescar!...
Uma vez ele me levou
para pescar no sítio do vizinho, onde havia uma prainha e um represamento
natural a formar uma agradável piscina de águas límpidas e convidativas ao
banho.
Também era a
lavanderia, pois contava com duas pranchas de peroba com uma ponta sob a água e
a outra bem acima, sob dois troncos enfiados no chão, para permitir bater a
roupa ao lavar, por isso, era chamado de “batedor”.
Lógico que esse local
não era adequado a pescar, exceto lambaris!... Todavia, próximo instalaram uma pinguela,
espécie de ponte pouco confiável, basicamente dois troncos estirados a cruzar o
riacho, a qual permitia passar para a outra margem e adentrar em locais densamente
dominados por capim navalha ou das taboas de brejo. E ali sim era o local de
pesca de meu pai!...
Minha mãe contava uma
história irônica sobre essa pinguela, pois também possibilitava às jovens
donzelas frequentarem os bailes do outro lado, onde existia outra
comunidade!...
Confidenciou-me a dona
Nizita que certa vez, uma tia se arrumou com o melhor vestido, passou batom,
colocou a maquiagem da época que era o pó de arroz, mas ao tentar cruzar a
pinguela, mesmo com todo o cuidado e lua cheia, escorregou e caiu na água!...
Eu gostava de nadar no riacho
e das algazarras que fazíamos com os tios e primas, mas ainda não tinha o gosto
pela pescaria, exceto se fosse de peneira, para pegar cascudo, carás, pequenos bagres,
lambaris e espadinhas.
E naquele dia meu pai me levou para o outro
lado da pinguela e ficamos no meio do mato, entre as taboas, na eterna
paciência budista de esperar algum peixe morder a isca. De repente, o mato
começou a se mexer mais abaixo e as taboas a dobrarem-se sobre as águas!...
– É uma sucuri!...
Exclamou meu pai assustado!...
As histórias de que existia
uma sucuri gigante naquele riacho há muito atormentava os frequentadores, mas
aquela foi a primeira vez que meu pai constatou de fato a sua existência!...
Imediatamente ele pegou
as varas de pesca, agarrou-me pelo braço e passou a pinguela numa agilidade
impressionante!... Pouco minutos depois estávamos muito longe do local!
Depois disso, por
muitos anos, vez ou outra em tinha o pesadelo de estar nessa pinguela e escutar
a sucuri vir me pegar!... Até perdi para o resto da vida o gosto por pescar.
E no caso de meu pai, a
situação se repetiu décadas depois, já na cidade de Naviraí, mas não com uma
Sucuri, isso de acordo com os relatos da dona Nizita.
Eles foram fazer uma
breve pescaria no rio Amambaí, numa estrada conhecida como “Balsinha” e levaram
um dos netos. Como de costume, meu pai não se contentava em pescar em local
aberto, pois dizia que os peixes estavam em locais ermos, nas margens fechadas
por algum mato. Por isso, aventuram-se pelo matagal, novamente através do capim
navalha e as taboas.
Lá pelas tantas,
escutaram uns rugidos um pouco acima de onde estavam!... Era uma onça!...
Imediatamente meu pai pegou as varas de pesca e velozmente adentrou o capim
navalha em direção à estradinha onde deixara a velha Toyota!...
Minha mãe pegou o neto no colo e
desesperadamente o seguiu uns dez metros atrás!... Quando finalmente estavam em
segurança dentro do carro, minha mãe questionou:
– Girso!... Você nos deixou para trás!...
– Claro que não! –
Justificou o meu pai. – Não viu que eu estava amassando o capim e a abrir
caminho para vocês passarem facilmente?...
Aliás, não foram poucas
às vezes onde os parentes da família italiana viajaram à Naviraí para visitar
os meus pais, sobretudo, porque também gostavam da oportunidade de conhecerem
os rios da região em muitas pescarias. O meu pai sempre foi o mais italiano dos
mineiros.
Numa dessas vezes,
quando fui visitar os meus pais com minha esposa e filhos, eis que reencontrei
os tios, primas e demais familiares!... Alguns de Cambira, outros de Sarandi e
Maringá. E conversa vai, conversa vem, muitas risadas, eis que nos lembramos da
tal tigela, a qual ainda estava intacta depois de quarenta e cinco anos!...
Somente então nos demos
conta da preciosidade daquele talismã a proteger o casamento do sanfoneiro
mineirinho com a Professora italiana por quase cinquenta anos!...
Então todos quiseram
tocar e beber “água” na preciosa tigela, a qual passou com todo o cuidado de mãos
em mãos de diversos casais, até de alguns solteiros, tudo para dar sorte!...
Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas
pelo coração?... E quem irá dizer que não existe razão?... (Legião Urbana).
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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