quinta-feira, 7 de abril de 2022

07 - A TIGELA

07 - A TIGELA

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?... E quem irá dizer que não existe razão?... (Legião Urbana).

Embarcamos no Jipe e deixamos Cambira. Na verdade, um comboio de três Jipes e um caminhão nas poeirentas estradas até Maringá, depois Nova Esperança, Paranavaí, Planaltina e por fim Sansabel, em quase três longos dias para transportar as famílias e a pouca mobília da época.

Eu ainda sentia as dores do ferimento na perna, mas dificuldade maior recaia sobre minha mãe, naquele mês de novembro de 1965, não apenas pelos recentes problemas com o meu pai ou os exigentes cuidados na amamentação da primeira filha, mas principalmente por causa da enorme barriga, situação que preocupava a todos!... Por isso, fiquei esquecido na intrépida jornada e até desconfio que a tenha feito em cima do caminhão, com os meus tios.

Meu avô italiano era bem sagaz. Vendera um sítio de vinte hectares e agora voltava para outro de dez, mas com uma significativa diferença: Antes era sócio com mais dois irmãos, agora seria dono único!...

E contava com dois filhos adultos para terminarem de desmatar e construírem uma nova casa mais perto da estrada, pois a antiga estava na baixada do riacho nos fundos da propriedade.

Infelizmente a meu pai coube retornar ao sítio do avô mineiro, em situação pródiga e humilhante, tanto que não pode ocupar à antiga casa onde nasci, a qual estava prometida ao filho mais novo, quando casasse. Mas nem seria possível, pois em novembro de 1965 era temporariamente habitada por uma das filhas recém-casada, a qual depois foi com o marido para Rondônia.

Havia outra casa, também em boas condições, a qual antes era ocupada pela família do irmão parceiro de meu pai em todas as atividades e empreitadas, até na tentativa de formação de uma dupla sertaneja.

E coube a esse irmão tocar o sítio quando meu pai foi embora. Entretanto, ele também desistiu e foi para Guarulhos SP, onde virou Marceneiro. E essa outra casa, em situação similar a primeira, estava ocupada por outra filha, por coincidência, casada com um dos filhos de um irmão do avô italiano.

No fim, os parentes construíram um ranchinho para a família de meu pai, com paredes de troncos rebocadas com barro e capim, de chão batido como piso, cobertura de telhas de madeira cortada do tronco de coqueiros macaúba. Tinha apenas dois cômodos: Uma cozinha e o quarto para os dois adultos, o casal de filhos e mais uma a caminho.

Depois de construída, meu avô mineiro chegou a cavalo, olhou a precariedade do ranchinho, mas ainda rancoroso e magoado, fez pouco caso e falou:

– É!... Para qualquer bagual serve!...

Quarenta anos depois eu voltei ao local. A casa onde nasci não existia mais, apesar de um monte de terra a indicar o local. A casa grande sequer tinha sinal. Idem quanto à outra casa do irmão violeiro de meu pai. Mas o ranchinho ainda estava de pé! Era garagem para uma carroça, mas estava firme e forte!...

Bagual é cavalo novo recém domado. Meu pai engoliu em seco e ficou calado. Situação desesperadora?... Nada disso! Meu pai estava muito satisfeito, pois voltara a fazer o que gostava, tanto em caçar, quanto em pescar no riacho aos fundos do sítio, fora aventuras no rio Ivaí ou no piscoso rio Taquara!...

Os meus tios italianos até ironizavam ao dizer que bastava surgir uma nuvenzinha lá longe no céu e o “Girso” largava a enxada e ia pescar!...

Uma vez ele me levou para pescar no sítio do vizinho, onde havia uma prainha e um represamento natural a formar uma agradável piscina de águas límpidas e convidativas ao banho.

Também era a lavanderia, pois contava com duas pranchas de peroba com uma ponta sob a água e a outra bem acima, sob dois troncos enfiados no chão, para permitir bater a roupa ao lavar, por isso, era chamado de “batedor”.

Lógico que esse local não era adequado a pescar, exceto lambaris!... Todavia, próximo instalaram uma pinguela, espécie de ponte pouco confiável, basicamente dois troncos estirados a cruzar o riacho, a qual permitia passar para a outra margem e adentrar em locais densamente dominados por capim navalha ou das taboas de brejo. E ali sim era o local de pesca de meu pai!...

Minha mãe contava uma história irônica sobre essa pinguela, pois também possibilitava às jovens donzelas frequentarem os bailes do outro lado, onde existia outra comunidade!...

Confidenciou-me a dona Nizita que certa vez, uma tia se arrumou com o melhor vestido, passou batom, colocou a maquiagem da época que era o pó de arroz, mas ao tentar cruzar a pinguela, mesmo com todo o cuidado e lua cheia, escorregou e caiu na água!...

Eu gostava de nadar no riacho e das algazarras que fazíamos com os tios e primas, mas ainda não tinha o gosto pela pescaria, exceto se fosse de peneira, para pegar cascudo, carás, pequenos bagres, lambaris e espadinhas.

E naquele dia meu pai me levou para o outro lado da pinguela e ficamos no meio do mato, entre as taboas, na eterna paciência budista de esperar algum peixe morder a isca. De repente, o mato começou a se mexer mais abaixo e as taboas a dobrarem-se sobre as águas!...

– É uma sucuri!... Exclamou meu pai assustado!...

As histórias de que existia uma sucuri gigante naquele riacho há muito atormentava os frequentadores, mas aquela foi a primeira vez que meu pai constatou de fato a sua existência!...

Imediatamente ele pegou as varas de pesca, agarrou-me pelo braço e passou a pinguela numa agilidade impressionante!... Pouco minutos depois estávamos muito longe do local!

Depois disso, por muitos anos, vez ou outra em tinha o pesadelo de estar nessa pinguela e escutar a sucuri vir me pegar!... Até perdi para o resto da vida o gosto por pescar.

E no caso de meu pai, a situação se repetiu décadas depois, já na cidade de Naviraí, mas não com uma Sucuri, isso de acordo com os relatos da dona Nizita.

Eles foram fazer uma breve pescaria no rio Amambaí, numa estrada conhecida como “Balsinha” e levaram um dos netos. Como de costume, meu pai não se contentava em pescar em local aberto, pois dizia que os peixes estavam em locais ermos, nas margens fechadas por algum mato. Por isso, aventuram-se pelo matagal, novamente através do capim navalha e as taboas.

Lá pelas tantas, escutaram uns rugidos um pouco acima de onde estavam!... Era uma onça!... Imediatamente meu pai pegou as varas de pesca e velozmente adentrou o capim navalha em direção à estradinha onde deixara a velha Toyota!...

Minha mãe pegou o neto no colo e desesperadamente o seguiu uns dez metros atrás!... Quando finalmente estavam em segurança dentro do carro, minha mãe questionou:

– Girso!... Você nos deixou para trás!...

– Claro que não! – Justificou o meu pai. – Não viu que eu estava amassando o capim e a abrir caminho para vocês passarem facilmente?...

Aliás, não foram poucas às vezes onde os parentes da família italiana viajaram à Naviraí para visitar os meus pais, sobretudo, porque também gostavam da oportunidade de conhecerem os rios da região em muitas pescarias. O meu pai sempre foi o mais italiano dos mineiros.

Numa dessas vezes, quando fui visitar os meus pais com minha esposa e filhos, eis que reencontrei os tios, primas e demais familiares!... Alguns de Cambira, outros de Sarandi e Maringá. E conversa vai, conversa vem, muitas risadas, eis que nos lembramos da tal tigela, a qual ainda estava intacta depois de quarenta e cinco anos!...

Somente então nos demos conta da preciosidade daquele talismã a proteger o casamento do sanfoneiro mineirinho com a Professora italiana por quase cinquenta anos!...

Então todos quiseram tocar e beber “água” na preciosa tigela, a qual passou com todo o cuidado de mãos em mãos de diversos casais, até de alguns solteiros, tudo para dar sorte!...


E finalmente entendi o mistério lá de Cambira, quando derrubei o armário ao tentar pegar o martelo e todos os utensílios de vidro e cerâmicas espatifaram-se no chão, mas permaneceu intacta a singela tigela, pois no futuro seria prova de amor!...

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?... E quem irá dizer que não existe razão?... (Legião Urbana).

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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