quinta-feira, 7 de abril de 2022

08 - AS ORIGENS

08 - AS ORIGENS

“Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha, não tem onde morar. Quem não chora dorme com fome, mas quem tem nome, joga prata no ar. Ô tempo duro no ambiente, ô tempo escuro na memória, o tempo é quente e o dragão é voraz”. (Fagner).

A sobrevivência é um dragão ao devorar o tempo. A vivência é uma fonte a fornecer oportunidades e lembranças. Ninguém pode dar aquilo que não tem. Nossos pais nos repassaram até ao limite daquilo que receberam ou aprenderam da vida, com o agravante da sobrevivência impor outros cuidados urgentes e assim é quase natural a filhos mais velhos ficarem para depois, para não escrever à revelia.

O problema é que o relógio gira incansavelmente e esse “depois” nunca chega, pois o dia acaba, passa outra semana, por fim outro mês e de repente, mais um ano!... E alguns filhos seguem esquecidos na curva do estigma de apenas um ou dois anos “mais velho”!... E por ser uma criança ativa, desde pequeno, fiz coisas ruins aos olhos adultos, entrei numa espiral inversa de sobrevivência a qual parecia um poço de agonia!...

Contudo, não posso continuar a relatar minhas aventuras desbravadoras, sem antes explicar as origens, pois preciso falar do mistério que fez meu avô deixar Minas e que depois fez meu pai regressar à terra natal sem saber se corria algum perigo. Se ele não tivesse retornado ao sertão do Paraná, nada de sanfona ou da Professora italiana. E talvez eu não existisse para relatar essas aventuras.

E até nisso a sobrevivência gera diferenças culturais, pois consigo encontrar registros históricos de antepassados mais abastados, mas quanto aos menos afortunados, sequer existe registro de nomes!...

Meu avô italiano, Ângelo Beraldo, chegou ao Brasil no início do século passado quando tinha três anos. Foi para Avanhandava, interior de São Paulo com outros dois irmãos. Cresceu, trabalhou, ganhou dinheiro, comprou terras, sempre em sociedade com os irmãos. Ali se casou com Marcelina Pellegrini, filha de imigrantes italianos. Teve cinco filhas e quatro filhos. Junto aos irmãos, comprou uma “Jardineira”, ônibus típico da época e fez por uns tempos o transporte de passageiros na região. Por fim, foi para Sansabel, na onda da febre do “ouro preto”, o precioso café. Mas quais foram os meus bisavôs lá na Itália?... Quais os nomes?...

Eu sei que a minha avó Jovelina era descendente de Perpétua Mineira. Pela certidão de casamento de meu avô, sei que um dos meus bisavôs tinha o nome de Generoso Xavier da Silva, casado com Ana Perpétua de Jesus. O outro tinha o nome de Severino Nunes Pereira, casado com Henedina Camargo Rebouças.

Os registros na internet dão conta que a minha bisavó Henedina, também era chamada de Enedina Camargo “Nunes Pereira”, cujo pai, portanto o meu bisavô, era Manuel José Rebouças, o qual era parente de Antônio Pereira Rebouças, Advogado, Monarquista, Abolicionista, Deputado e amigo da Família Imperial.

São inúmeros os registros quanto aos Rebouças, pois o Antônio casou-se com Carolina Pinto, uma negra liberta pela lei de ventre livre e deram origem a dois célebres Engenheiros do Brasil Império, o também Antônio Rebouças e o André Rebouças, ambos negros, os quais dão nomes a muitas praças e avenidas em várias cidades do Brasil.

Entretanto, pouco registro existe quanto à origem da família de meu bisavô Severino Nunes Pereira. É amplamente conhecido que os “Cristãos Novos” colonizaram o Brasil, principalmente depois do Rei Felipe II de Espanha herdar também a coroa de Portugal, após Dom Sebastião desaparecer em uma batalha no Marrocos, isso no final da década de 1580.

Mas bem antes, na virada do primeiro milênio da era cristã, os Judeus foram obrigados a fugir ou a se converterem ao Catolicismo, no período mais tenebroso da idade das trevas, quando qualquer acusação permitia abrir processo junto aos Inquisidores. As famílias judias mudaram seus sobrenomes para temas vinculados à natureza, pois poderiam se identificar sem correr o risco. Assim surgiu a família Pereira.

Mas como diriam os antigos, isso foi “um tiro no pé”, pois com o tempo todos sabiam perfeitamente quais famílias, mesmo com cargos ou títulos prestigiados na realeza, eram “cristãos novos” e, portanto, indicados a colonizar o Brasil!...

E são tantos os registros de Pereiras nessas condições, desde o ano de 1532, com o donatário da Capitania Hereditária da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, até ao alfaiate Manuel Pereira Rebouças quase três séculos depois, de forma que fica impossível identificarem os antepassados de meu bisavô Severino Nunes Pereira, exceto que era “cristão novo”, ainda mais com o “Nunes” no nome, família amplamente perseguida pelos Inquisidores, inclusive, no Brasil Colônia!...

E o que isso importa?... Se não há registro, é indicativo de pobreza. Mas para o meu lado, em nada!... Mas importou para o meu pai e desde pequeno, pois foi obrigado a aprender a escrever com a mão direita e diziam que os canhotos eram contra Deus, pois supostamente todos os judeus mataram Jesus!...

O meu bisavô Severino era dono da enorme fazenda Pedra Redonda e da não menor fazenda Rio Verde e conforme relata meu pai, levava um dia inteiro a cavalo para atravessá-la!...E de onde veio essa riqueza?... Qual a origem?... E por que os primos de meu avô Eurico não contavam com tamanha abastança?...

Em minha opinião, toda essa riqueza veio por herança da bisavó Enedina Rebouças! Isso explica porque tudo foi repassado ao meu avô Eurico, filho homem, restando à outra filha casar e viver os restos de seus dias em Adamantina SP.

E desconfio que meu avô Eurico fosse Republicano, pois colocou o nome de “Brasilina” em sua primeira filha, totalmente em desacordo com as tradições de somente usar nomes bíblicos ou de antepassados. Por outro lado, o bisavô Severino era declaradamente monarquista e não tinha escravos em suas propriedades, em consonância com as tradições da família Rebouças. Enfim, a política divide famílias há séculos!...

Aliás, muitas décadas depois, contou-me o meu pai, um domingo ele foi pescar numa ilha do rio Amambai, via saída para o Porto Caiuá. Era um dia ruim e não pegava nem os tradicionais mandis, quanto menos um agradável piau ou quem sabe um saboroso dourado!... Por fim, resolveu fumar num banco próximo e conversar com um senhor negro muito velho também a pitar.

Conversa vai, conversa vem, ambos com a típica maneira de pausar cada palavra lá do interior de Minas, logo ficou claro que eram mineiros!... E para o espanto dos dois, mineiros de Espinosa!... Mais ainda!... Ambos de Mamonas, um distrito de Espinosa!...

– Uai!... – Exclamou o velho do rio, mais para “Pai Velho” com seus cabelos brancos. – Qual o nome de sua família?...

– Eu sou dos Nunes Pereira!... Respondeu o meu pai.

– Ara, sô! – Falou o velho. – Eu também sou Nunes Pereira!...

Meu pai ficou abismado e sem palavras. Era de conhecimento geral a existência de antepassados negros na família e não apenas do lado dos Rebouças, tanto assim que até os dias atuais, vez ou outra, nasce um descendente moreno. E praticamente todos possuem manchas negras pelo corpo, a indicar a miscigenação com tupis guaranis, brancos e negros! Mas os engenheiros Rebouças seriam morenos ao comparar com aquele sinhozinho!...

Então o velho explicou que ele era um escravo liberto das fazendas de meu bisavô Severino, mas nunca foi na verdade escravo, pois eram tratados com muita dignidade e respeito, além de moradias adequadas. Quando teve a Proclamação de Libertação em 1888, muitos pediram e ganharam terras nos extremos das divisas, já que as fazendas eram imensas. Por ausência de referências nativas, era comum aos negros adotarem os sobrenomes dos donos das fazendas e assim ele passou a ser também um Nunes Pereira!...

O velho só faltou chorar de tanta emoção, pois depois de tanto tempo e andanças pelo mundo, poder encontrar um descendente de sinhozinho Severino foi uma benção de Deus!... E ficaram a conversar, até o sol sumir no horizonte!...

Ainda lá em Minas, os dois filhos mais velhos de meu avô foram embora para São Paulo tão logo chegaram à maioridade. Um virou Marinheiro e depois Mecânico em Santos. Outro virou Mecânico e depois Motorista, mas de tanto dar cabeçadas na vida, quando envelheceu foi morar justamente em Naviraí!...

Isso eu vi com os meus olhos. Num bonito domingo de sol, fomos pescar na tal ilha do rio Amambai e no caminho encontramos o irmão mais velho de meu pai e uma amasiada, acampados na beira do rio em sua velha caminhonete C-14!... Acompanhei a prosa dos mineiros até findar o dia, enquanto me deliciava com a oferta do doce de casca de laranja do mato...


Uma semana depois, para variar as recreações, novamente fomos pescar na mesma ilha e de novo o encontramos!... Como se também não estivéssemos a fazer a mesma rotina, meu pai falou:

– Uai!... Também voltou?...

– Que nada, sô! – Ele falou com aquele jeito mineiro. – E quem falou que eu fui embora?...

Ele tinha ficado a semana toda na beira do rio!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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