quinta-feira, 7 de abril de 2022

13 - A IGREJA

13 - A IGREJA

Que a família comece e termine sabendo aonde vai e que o homem carregue nos ombros a graça de um pai. Que a mulher seja um céu de ternura, aconchego e calor e que os filhos conheçam a força que brota do amor! Abençoa Senhor, as famílias, amém! Abençoa Senhor, a minha também! (Padre Zezinho).

Meu avô mineiro contava com dois enormes cães para ajudar a proteger o sítio. Um em especial era muito elegante, branco com manchas marrons e uma preta em um dos olhos. Era dócil com as crianças, apesar do nome “Lobo”.

No sítio, há anos eu não era a única criança, pois ao menos outras cinco rompiam o silêncio da vida tranquila em algazarras sem fim, já que possuíamos energia ilimitada!...

Em certa manhã, fui informado por minha mãe que não poderia levar a marmita de meu pai. O Lobo estava doente. Pegara uma praga incurável com o nome de “raiva”. Estava a babar e com grandes olhos vermelhos. Uivava a noite inteira a vagar sem rumo pelo pasto, cuja cerca era rente ao ranchinho e dava calafrios quando escutávamos tão perto, do outro lado da parede, a respiração ofegante de sua agonia!...

Não tinha outra solução. Era preciso sacrificá-lo. Meu pai pegou a cartucheira vermelha e ficou de tocaia. Estava tão concentrado em atingir seu alvo que nem notou minha presença um pouco atrás, pois a minha curiosidade superava qualquer perigo!... Não demorou e o Lobo apareceu no meio do capim em sua carreira louca. Meu pai apontou a cartucheira e atirou!... Um tiro só!... Ele deu um gemido e caiu!... Fiquei paralisado num conflito de sentimentos extremos, pois não sabia se comemorava a pontaria de meu pai ou se lamentava a morte do cachorro...

Fiquei triste e confuso por vários dias. E foi preciso novamente me levar à benzedeira lá na baixada do areão, perto da casa da família de uma irmã de minha mãe, uns cinco sítios distante, onde eu já estivera quando era criança de colo. Era uma velha negra, muito simpática e prestativa. A casa era perto da estrada.

Como de costume, fomos recebidos pelos fundos e subimos os degraus de acesso pela escada de madeira rente à parede. A velha senhora iluminou o ambiente com seu amoroso sorriso e depois dos cumprimentos, pegou um raminho de arruda, uma caneca com água e começou a repetir o sinal da cruz acima de minha cabeça. Enquanto fazia uma misteriosa reza, molhava a arruda na caneca e depois aspergia sobre meu corpo.

Por fim, em linguagem traduzida, alertou:

– Vocês precisam ter muita atenção com este menino. Ele é sensível. É vulnerável a puxar para si energias ruins do ambiente. Vai precisar de muita oração para esvaziar antes de transbordar. Por outro lado, seu espírito é forte, mas está no fio da navalha entre o bem e o mal. Sem ajuda, não saberá escolher o bom caminho...

Foi assim que meus pais intensificaram a presença dominical na igrejinha em frente ao campo de futebol, no início da estrada do “Barraco”. Ou em inumeráveis Terços de sítios em sítios, em cansativas e repetidas rezas, isso quanto às mulheres, pois os homens preferiam aproveitar a ocasião para contarem seus causos em barulhentas partidas de truco, o preferido jogo de cartas!... Isso enquanto eles consumiam uma água suspeita, mas muito apreciada, extremamente proibida às crianças, trazida da cidade em garrafas ou potes com o desenho de um camarão!...

As crianças comiam batatas doce assadas na fogueira ou amendoins e faziam competições para identificarem quem mais capturava alguns dos inumeráveis vaga-lumes!... E esperavam ansiosamente o delicioso e tradicional chocolate quente, servido após as infindáveis rezas!...

Alguns meninos mais levados preferiam balançar no ar algumas varas de pesca de bambu com o objetivo sinistro de atrapalhar o radar dos morcegos, tão comuns ao anoitecer e ganhava quem conseguisse atingir ao menos um deles!...

Tais encontros eram mais comuns entre os italianos, pois os mineiros eram avessos a tais cerimônias. Foi numa ocasião assim, no sítio de meu avô italiano, que resolvi mostrar o quanto já estava forte e recuperado após a queimadura no braço!... Era comum em cada sítio a presença do batedor de arroz, feito com vigas de madeira e caibros atravessados, pois era um material com baixo custo e grande oferta, ao menos naquele tempo de amplo e permitido desmatamento.

Com as ceifas, uma espécie de facão circular extremamente afiado, com uma mão juntavam em feixes os talos de arroz e com a outra decepavam próximo ao solo. Depois levavam esses feixes para a sede do sítio. O tal batedor, chamado também de girau, era posicionado sobre grandes lonas, em seguida batiam repetidas vezes os talos de arroz até soltarem todos os graus sobre a lona. Portanto, era essencial que fosse feito com vigas e caibros, para que ficasse bem firme pelo próprio peso da madeira.

Quanto a fritura, a carne sarou. A pele se reconstituiu. Ficaram algumas leves saliências e apenas uma maior cicatriz, mas tudo imperceptível e escondido na parte interna do braço. Então resolvi mostrar o quanto já estava forte e tentei erguer um lado do tal batedor!... Mas em meus cinco anos, o peso mostrou-se além de minhas forças e para meu azar, moveu para o lado e caiu sobre o meu dedão do pé!... Foi uma dor horrível!... Quebrou a unha em duas partes!...

Meus tios riram!... Eram os meus inseparáveis amigos, diante da pouca diferença de idade. Mas no geral, ninguém se importou. Sequer examinaram. Acho que aplicaram o ditado: Uma vez é pouca (armário), duas até vai lá (tacho), mas três é demais!... Minhas peraltices já não importavam para fazer diferença! Além do mais, minha mãe estava grávida pela quarta vez e as duas filhas exigiam também constantes cuidados!...

Fiquei alguns dias com a unha separada em duas partes, a exigir que fossem extraídas, mas eu não sabia o que fazer. Por fim, caíram!... Mas não nasceu outra nova no lugar. Nasceram duas!... E até hoje é assim. Sempre preciso cuidar e até arranquei-as algumas vezes. Mas não adianta. Novamente nascem as duas metades, quais rivais a tentar ensinar uma lição que nunca aprendi!...

Enquanto isso, todo sagrado domingo, arreavam o cavalo e de carroça cumpriam a missão de presenciar a missa lá na igrejinha. E até hoje não sei se era pela devoção ou pelo tradicional jogo de futebol que se seguia!... Ou mesmo pela confraternização, pois juntava tanta gente que parecia um formigueiro humano!...


Naquela época o Catolicismo atingia índices acima de 90% entre a população brasileira. Em 1960 eram 93% ou 95% em 1950. A presença dos sitiantes era tamanha que padres vinham de Sansabel ou Loanda para celebrarem as Missas. E foi um deles que deu ao meu pai uma preciosa Bíblia!...

Em 1976, entre uma aventura ou outra, foi essa Bíblia que eu li por completo!... E naquela época não tinha internet, então a leitura de livros era o principal passatempo!... Eu queria entender o mistério da fé!... Qual a origem da vida?... Como explicar tantas desigualdades e sofrimentos?... Qual o sentido de tudo?...

Na época, meu pai estava trabalhando em Naviraí e decidi frequentar as aulas de Catecismo ao lado da Igreja Matriz, em Sansabel, mas não cheguei a fazer a primeira comunhão, pois aconteceu um incidente terrível, de muita agonia, o qual será relatado posteriormente.

Entretanto, também não é justo dizer que em 1976 tenha lido por completo a Bíblia, pois o Padre tinha arrancado a parte final!... Deixara somente até o final do Evangelho de João!... Mas guardei essa Bíblia Católica e a considero uma relíquia, pois é uma versão anterior das atuais Vulgatas, onde excluíram a palavra “consolador” e colocaram “paracleto”.


Mas em 1967 a presença de meu pai era tão frequente na Igrejinha do “Barraco” que logo passou a ocupar um cargo entre a irmandade, diante de seu exemplo de fé e participação, ao ponto de usar uma faixa de distinção e referência. Num desses domingos, tal qual acontecia em todo final de semana, meu pai adentrou o confessionário e o Padre vindo de Loanda perguntou:

– Há quanto tempo não faz a confissão, meu filho?...

– Eu sou... (Meu pai falou o cargo que exercia).

– Não foi isso que perguntei. – Falou rispidamente o Padre. – Eu quero saber quando fez a última confissão!...

– Não vê a faixa no meu peito?... – Respondeu o meu pai. – Eu estou na igreja em todos os domingos e se não fizesse a confissão não receberia essa faixa.

– Essa faixa não significa nada!... – Esbravejou o Padre. – E tenha respeito comigo!... Quem você pensa que é?...

“Quem sou eu”?!... Pensou o meu pai. Levantou-se enfurecido, arrancou a faixa do peito e a jogou no Padre. Depois abandonou a igrejinha e nunca mais voltou!... Colocou a família na carroça e retornou ao sítio, enquanto minha mãe perguntava:

– Fala comigo, “Girso”!... O que aconteceu para sair assim?... Não vê o escândalo que fez?... O que irão falar?!...

E somente voltou a entrar numa Igreja em 1970 em Monte Castelo!... E novamente foi tão traumatizante que demorou décadas para retornar!... Mas isso vai ficar para outra narrativa.

---------------------------------------------------------------------------

Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário