13 - A IGREJA
Que a família comece e
termine sabendo aonde vai e que o homem carregue nos ombros a graça de um pai.
Que a mulher seja um céu de ternura, aconchego e calor e que os filhos conheçam
a força que brota do amor! Abençoa Senhor, as famílias, amém! Abençoa Senhor, a
minha também! (Padre Zezinho).
Meu avô mineiro contava
com dois enormes cães para ajudar a proteger o sítio. Um em especial era muito
elegante, branco com manchas marrons e uma preta em um dos olhos. Era dócil com
as crianças, apesar do nome “Lobo”.
No sítio, há anos eu
não era a única criança, pois ao menos outras cinco rompiam o silêncio da vida
tranquila em algazarras sem fim, já que possuíamos energia ilimitada!...
Em certa manhã, fui
informado por minha mãe que não poderia levar a marmita de meu pai. O Lobo
estava doente. Pegara uma praga incurável com o nome de “raiva”. Estava a babar
e com grandes olhos vermelhos. Uivava a noite inteira a vagar sem rumo pelo
pasto, cuja cerca era rente ao ranchinho e dava calafrios quando escutávamos
tão perto, do outro lado da parede, a respiração ofegante de sua agonia!...
Não tinha outra
solução. Era preciso sacrificá-lo. Meu pai pegou a cartucheira vermelha e ficou
de tocaia. Estava tão concentrado em atingir seu alvo que nem notou minha
presença um pouco atrás, pois a minha curiosidade superava qualquer perigo!...
Não demorou e o Lobo apareceu no meio do capim em sua carreira louca. Meu pai apontou
a cartucheira e atirou!... Um tiro só!... Ele deu um gemido e caiu!... Fiquei
paralisado num conflito de sentimentos extremos, pois não sabia se comemorava a
pontaria de meu pai ou se lamentava a morte do cachorro...
Fiquei triste e confuso
por vários dias. E foi preciso novamente me levar à benzedeira lá na baixada do
areão, perto da casa da família de uma irmã de minha mãe, uns cinco sítios
distante, onde eu já estivera quando era criança de colo. Era uma velha negra,
muito simpática e prestativa. A casa era perto da estrada.
Como de costume, fomos
recebidos pelos fundos e subimos os degraus de acesso pela escada de madeira
rente à parede. A velha senhora iluminou o ambiente com seu amoroso sorriso e
depois dos cumprimentos, pegou um raminho de arruda, uma caneca com água e
começou a repetir o sinal da cruz acima de minha cabeça. Enquanto fazia uma misteriosa
reza, molhava a arruda na caneca e depois aspergia sobre meu corpo.
Por fim, em linguagem traduzida, alertou:
– Vocês precisam ter
muita atenção com este menino. Ele é sensível. É vulnerável a puxar para si
energias ruins do ambiente. Vai precisar de muita oração para esvaziar antes de
transbordar. Por outro lado, seu espírito é forte, mas está no fio da navalha
entre o bem e o mal. Sem ajuda, não saberá escolher o bom caminho...
Foi assim que meus pais
intensificaram a presença dominical na igrejinha em frente ao campo de futebol,
no início da estrada do “Barraco”. Ou em inumeráveis Terços de sítios em sítios,
em cansativas e repetidas rezas, isso quanto às mulheres, pois os homens
preferiam aproveitar a ocasião para contarem seus causos em barulhentas
partidas de truco, o preferido jogo de cartas!... Isso enquanto eles consumiam
uma água suspeita, mas muito apreciada, extremamente proibida às crianças,
trazida da cidade em garrafas ou potes com o desenho de um camarão!...
As crianças comiam batatas
doce assadas na fogueira ou amendoins e faziam competições para identificarem
quem mais capturava alguns dos inumeráveis vaga-lumes!... E esperavam
ansiosamente o delicioso e tradicional chocolate quente, servido após as
infindáveis rezas!...
Alguns meninos mais levados
preferiam balançar no ar algumas varas de pesca de bambu com o objetivo
sinistro de atrapalhar o radar dos morcegos, tão comuns ao anoitecer e ganhava
quem conseguisse atingir ao menos um deles!...
Tais encontros eram
mais comuns entre os italianos, pois os mineiros eram avessos a tais
cerimônias. Foi numa ocasião assim, no sítio de meu avô italiano, que resolvi
mostrar o quanto já estava forte e recuperado após a queimadura no braço!...
Era comum em cada sítio a presença do batedor de arroz, feito com vigas de
madeira e caibros atravessados, pois era um material com baixo custo e grande
oferta, ao menos naquele tempo de amplo e permitido desmatamento.
Com as ceifas, uma
espécie de facão circular extremamente afiado, com uma mão juntavam em feixes
os talos de arroz e com a outra decepavam próximo ao solo. Depois levavam esses
feixes para a sede do sítio. O tal batedor, chamado também de girau, era
posicionado sobre grandes lonas, em seguida batiam repetidas vezes os talos de
arroz até soltarem todos os graus sobre a lona. Portanto, era essencial que
fosse feito com vigas e caibros, para que ficasse bem firme pelo próprio peso
da madeira.
Quanto a fritura, a
carne sarou. A pele se reconstituiu. Ficaram algumas leves saliências e apenas
uma maior cicatriz, mas tudo imperceptível e escondido na parte interna do
braço. Então resolvi mostrar o quanto já estava forte e tentei erguer um lado
do tal batedor!... Mas em meus cinco anos, o peso mostrou-se além de minhas
forças e para meu azar, moveu para o lado e caiu sobre o meu dedão do pé!...
Foi uma dor horrível!... Quebrou a unha em duas partes!...
Meus tios riram!...
Eram os meus inseparáveis amigos, diante da pouca diferença de idade. Mas no
geral, ninguém se importou. Sequer examinaram. Acho que aplicaram o ditado: Uma
vez é pouca (armário), duas até vai lá (tacho), mas três é demais!... Minhas
peraltices já não importavam para fazer diferença! Além do mais, minha mãe estava
grávida pela quarta vez e as duas filhas exigiam também constantes cuidados!...
Fiquei alguns dias com
a unha separada em duas partes, a exigir que fossem extraídas, mas eu não sabia
o que fazer. Por fim, caíram!... Mas não nasceu outra nova no lugar. Nasceram
duas!... E até hoje é assim. Sempre preciso cuidar e até arranquei-as algumas
vezes. Mas não adianta. Novamente nascem as duas metades, quais rivais a tentar
ensinar uma lição que nunca aprendi!...
Naquela época o
Catolicismo atingia índices acima de 90% entre a população brasileira. Em 1960
eram 93% ou 95% em 1950. A presença dos sitiantes era tamanha que padres vinham
de Sansabel ou Loanda para celebrarem as Missas. E foi um deles que deu ao meu
pai uma preciosa Bíblia!...
Em 1976, entre uma
aventura ou outra, foi essa Bíblia que eu li por completo!... E naquela época
não tinha internet, então a leitura de livros era o principal passatempo!... Eu
queria entender o mistério da fé!... Qual a origem da vida?... Como explicar
tantas desigualdades e sofrimentos?... Qual o sentido de tudo?...
Na época, meu pai estava
trabalhando em Naviraí e decidi frequentar as aulas de Catecismo ao lado da Igreja
Matriz, em Sansabel, mas não cheguei a fazer a primeira comunhão, pois
aconteceu um incidente terrível, de muita agonia, o qual será relatado posteriormente.
– Há quanto tempo não faz a confissão, meu
filho?...
– Eu sou... (Meu pai falou o cargo que
exercia).
– Não foi isso que perguntei. – Falou
rispidamente o Padre. – Eu quero saber quando fez a última confissão!...
– Não vê a faixa no meu peito?... – Respondeu o
meu pai. – Eu estou na igreja em todos os domingos e se não fizesse a confissão
não receberia essa faixa.
– Essa faixa não
significa nada!... – Esbravejou o Padre. – E tenha respeito comigo!... Quem
você pensa que é?...
“Quem sou eu”?!... Pensou o meu pai.
Levantou-se enfurecido, arrancou a faixa do peito e a jogou no Padre. Depois
abandonou a igrejinha e nunca mais voltou!... Colocou a família na carroça e
retornou ao sítio, enquanto minha mãe perguntava:
– Fala comigo, “Girso”!...
O que aconteceu para sair assim?... Não vê o escândalo que fez?... O que irão
falar?!...
E somente voltou a entrar
numa Igreja em 1970 em Monte Castelo!... E novamente foi tão traumatizante que demorou
décadas para retornar!... Mas isso vai ficar para outra narrativa.
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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