quinta-feira, 7 de abril de 2022

27 - AS MOEDAS

27 - AS MOEDAS

O que é dos outros não se deve ter! (Roberto Carlos).

Eu nem fazia questão, mas no início de 1972 completei dez anos!... Estava matriculado na 3º série do Grupo Alberico. A televisão veio meses depois. Portanto, após retornar da escola, era tradicional jogar bolinha de gude – mas falávamos “burquinhas” – na modalidade “cabecinha” e “biroca”, mas também jogávamos “triângulo” e “estrela”. Aliás, foi assim que aprendi a fazer a estrela de Davi sem tirar o dedo do chão!...

E tinha uma quinta opção, mas nem sei o nome... Basicamente era com apenas dois jogadores. Um jogava a burquinha uns cinco a dez metros à frente e o outro deveria acertá-la e neste caso ganharia a bolinha!... Se errasse, era sua vez de primeiro jogar para o outro tentar acertar. E assim sucessivamente, o que permitia percorrer uma longa distância sem nem perceber!...

Dava até para jogar sozinho!... Bastava ter duas burquinhas e uma rua a sumir de vista. Foi assim que virei explorador da cidade!... A parte central eu já conhecia, tanto as avenidas do comércio, a praça da Igreja Matriz e os armazéns de café. Mas depois explorei as três saídas em direção ao rio Ivaí, as duas saídas para Planaltina, a saída para Monte Castelo e a sétima para Loanda e ali existia uma grande serraria quase em frente à entrada da fazenda do vizinho.

Assim conheci o córrego na vila do sapo, mas era muito ruim e sujo e a parte boa estava em propriedade particular abaixo do Estádio Municipal, então era mais fácil seguir em frente e após a enorme subida na saída para Monte Castelo, finalmente chegávamos ao riacho Tamanduateí!... Era o “point” da meninada!... Muitos pescadores, tanto de vara quanto com peneiras, mas a maioria queria mesmo era brincar na água lamacenta de tantos pés de exploradores!...

Outra diversão interessante era pular de três metros do cume dos morros com mais de cem metros de extensão de pó de serra das serrarias e escorregar ou rolar pela orla!... E nisso dois destaques: Primeiro se existiam morros tão grandes de pó de serra, fácil de se imaginar o quanto foram devastadas as florestas da região!... Segundo, não era uma prática permitida!... E o motivo era simples: No meio do pó de serra poderia estar alguma ponta ou farpa de madeira!... Felizmente comigo nunca aconteceu nenhum acidente, o que é até de se estranhar...

Bom mesmo era quando minha mãe me dava duas cédulas de 1 Cruzeiro, o que permitia assistir dois filmes nas matinês aos domingos!... Entrávamos às treze horas e saíamos às dezessete horas!... Filmes de Tarzan, Faroeste, Zorro, Kung-Fu e de um lutador mascarado com o nome de “Santo”!... Lembro-me de um domingo onde o filme era de Kung-Fu!... Uma tribo foi invadida por bárbaros mongóis e uma mulher conseguiu fugir para a praia, mas ela estava com uma mama de fora!... Quase o cinema veio abaixo com a gritaria e pulos da molecada!... Assobios e gargalhadas sem fim, enquanto a mulher corria com a mama a balançar!...

Somente depois meu pai ganhou uma televisão novinha do patrão, já que a oficina voltara a dar bons lucros!... Com isso, eram tantas as opções de divertimento e eu nem fazia questão de retornar ao sítio!... Mas se a oportunidade surgisse, por que não?...

E surgiu muito melhor!... Meu pai comprou um Fordão preto Sedan 1935!... Era tão antigo que para dar a partida precisava girar uma manivela na frente, acima do para-choques!... A lataria era tão dura que era difícil entortar e poderia durar outros trinta e sete anos!... Mas o importante é que estava tudo funcionando e o estofado era muito confortável!...


No primeiro fim de semana lá fomos nós para o sítio do avô “Coisão”!... Até fez questão de passar num outro sítio no ramal sete onde morava uma de suas irmãs!... Aliás, por razões interesseiras, eu gostava de visitar esses parentes, pois ali frutificavam as mais doces laranjas de toda a região!... Depois fomos para o sítio no “Barraco!... Meu pai desceu o carregador o tempo todo a buzinar!... Parou o Fordão preto bem na frente da casa e desceu, todo triunfante da vida, praticamente escrito na testa: Eu consegui!...

Nos meses seguintes poucas vezes fui ao cinema, pois geralmente a diversão da família era as visitas ao “Barraco”.!... Chegávamos de manhã, voltávamos à tarde!... E tal qual aconteceu no final de 1967, isso teve consequências, pois influenciou o filho mais velho de meu avô a também tentar a sorte em Sansabel, onde arrumou emprego de Balconista justamente no mercado onde fazíamos as compras, para pagar no fim do mês.

Com isso, por duas vezes, entrei para trás do balcão, fui até o canto onde estavam as caixas de fogos de artifícios e a ardilosa ambição falou mais alto e peguei algumas bombinhas!... Pensei que ninguém tivesse visto!... Mas meu tio estava atento e anotara na folha das contas a pagar por meu pai!... Melhor seria se tivessem orientado. Combater ilícito com esperteza pode eliminar o prejuízo, mas não interrompe a atitude inadequada!...

Em novembro retornamos ao sítio. Na quarta-feira seguinte seria feriado e meus tios combinaram com o meu pai em fazerem uma pescaria no rio Ivaí, pois agora tinham o Fordão para ir e voltar!... Então meu pai voltou com parte da família para Sansabel para retornar sozinho na quarta-feira bem cedinho!... E foi assim que consegui ficar no sítio por mais dois dias!...

Na segunda-feira meus tios retomaram os serviços no cafezal e resolvi aprender a andar de bicicleta!... Era uma velha bicicleta Monark com um círculo no meio do quadro. Geralmente as crianças aprendiam após passar a perna por dentro do quadro e assim controlar o outro pedal com a bicicleta meio de lado. Mas na Monark não dava para fazer isso.

Então empurrei a bicicleta carreador acima, subi no selim ao lado de um banco de espera de ônibus e dei o impulso!... Consegui me equilibrar em cima da bicicleta!... Ela deslizou carreador abaixo e foi uma sensação incrível de liberdade!... Somente descobri que o freio pouco funcionava quando estava perto da curva de entrada!... Tentei desesperadamente frear, passei em frente à casa, fiz a curva à direita para tentar dar a volta na casa e assim reduzir a velocidade ao iniciar a nova subida, mas não foi possível!... Bati na parede da tuia!...

Ainda bem que não quebrou a bicicleta!... Então decidi tentar novamente. Empurrei a bicicleta carreador acima e deu muito trabalho, mas eu estava decidido a aprender!... Dessa vez comecei a frear desde o início, de forma que ao chegar na curva estava bem mais lento. Fiz a curva à direita e antes da tuia fiz outra curva à direita, mas bati no mourão da varanda!...

Tentei pela terceira vez. Já estava exausto de empurrar a bicicleta pelo carreador. Desci apertando o freio o tempo todo!... Consegui fazer as curvas e passei ao lado da varanda!... Ainda bem que não tinha ninguém ali nos fundos!... Quando iniciou a nova subida, finalmente passei a mover os pedais e a bicicleta foi em frente, carreador acima!... Fiquei louco de felicidade a gritar:

– Consegui!... Consegui!... Consegui!...

Minha avó apenas olhou pela janela da cozinha e balançou a cabeça...

Depois decidi descansar. Deitei numa das camas de meus tios e notei as caixas de sapatos colocadas nos cantos mais elevados, quase rente ao telhado!... Por que fariam isso?... Quem iria mexer para guardarem tão alto?... Então caiu a ficha!... Eu era o pestinha a ser evitado!... Achei aquilo um insulto!... Então resolvi mexer, não por curiosidade, mas para provar que colocar em tais lugares jamais me impediria de alcançar!... Se era para não mexer, bastaria avisar!...

Além de alguns papéis, só em uma tinha cédulas de dinheiro. Mas todas guardavam algumas moedas, na verdade, contei trinta!... Na terça-feira não fiz nada. Na quarta-feira meu pai chegou e foram pescar. Então coloquei em prática o meu ardiloso plano!... Resolvi pegar as trinta moedas!... Algumas eram de apenas um centavo e deixei para trás!... À tardinha meu pai voltou e fomos para Sansabel.

No dia seguinte, após voltar da escola, peguei as moedas e fui para a praça da rodoviária velha, onde encontrei um caminhão de venda de frutas. Juntei todas para comprar apenas dois saquinhos de caqui!... Era uma fruta que eu nunca tinha visto e resolvi experimentar!... Gostei e comi todos!...

Quando cheguei em casa minha mãe estava de cara fechada. Mal falou porque meu pai teve de voltar ao sítio. Quando ele chegou, levei a terceira pior surra de minha vida!... Isso fora o sermão de arrancar pica-pau do oco!... Onde já se viu?... Roubar o dinheiro de meus tios!... E tentei argumentar que eram apenas moedas, mas fui informado que para eles era tudo o que tinham!... Será que eu não tinha noção do quanto era penoso ganhar algum dinheiro no sítio?... Tudo o que faziam era para a família!... Só recebiam algum dinheiro se fizessem algum serviço extra em outro sítio!...

– Eu vou trabalhar!... Eu vou ganhar dinheiro e vou devolver!...

– Vai trabalhar com certeza! – Falou bravo o meu pai. – Mas não precisa devolver porque já fiz isso e em dobro, depois de suportar o maior falatório por sua causa!...

E assim aprendi que ambição é um sentimento muito perigoso!... E as atitudes dos outros não justificavam minhas atitudes, pois pegar mangas podia, moedas não!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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