quinta-feira, 7 de abril de 2022

25 - O LEITEIRO

25 - O LEITEIRO

Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura, lá no morro, barracão é bangalô. Lá não existe felicidade de arranha-céu, pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu!... (Ave Maria do Morro / Herivelto Martins).

Ao lado de nossa nova casa morava uma família portuguesa com certeza e eram donos da fazenda imediatamente após o matão dos duzentos hectares, mas para o lado da saída para Loanda. Era quase estritamente de criação de gado, mas na cabeceira, após uns três quilômetros da Sede, existia uma plantação de mandioca, cujo acesso também era possível pela outra estradinha que cortava o matão, aquela onde eu acertaria o Corcel vermelho cinco anos depois!...

Até hoje não sei se eles eram também donos do matão até o limite da cidade, mas tenho certeza quanto a parte próxima a fazenda, pois chegaram a criar gado mesmo dentro do mato!... Portanto, quando eu me aventurava com o facão de meu pai pelo matão dos duzentos, cinco anos depois, apesar da história do tal fazendeiro que iria “matar” o menino que teria cortado a cerca, não fazia isso por total maluquice!...

Em 1971 não existia leite pasteurizado. Muito tempo depois é que surgiram os primeiros saquinhos e após as atuais caixinhas. O leite era entregue ao consumidor “in natura”, diretamente do produtor. Logicamente precisava ferver antes de consumir e derramava se não tirasse imediatamente do fogo!... Daí a expressão: “Cuidar da criança ou do leite”. Ou “chorar o leite derramado”.

E assim arrumei o meu primeiro emprego, aos nove anos!... Deveria levantar às cinco da manhã, seguir no Jeep do fazendeiro até a Sede da fazenda. Antes disso o Caseiro deveria tirar o leite das vacas no curral e armazenar em três grandes tambores. Ao chegarmos, imediatamente colocavam os tambores na traseira do Jeep para então retornarmos à cidade e cumprirmos o giro de entrega!... Tinha que ser tudo muito rápido e eficiente. Se perdesse tempo, o último cliente poderia receber o leite muito tarde, portanto, risco de azedar!...

O fazendeiro estacionava em frente, imediatamente descia, colocava um ou dois litros num pequeno tambor e começava o meu serviço!... Transportar, chamar o cliente, despejar diretamente na chaleira ou canecão e voltar o mais rápido possível para o Jeep!... E nisso entrava a minha esperteza, pois se fosse perder tempo em chamar ou bater palmas, até o cliente decidir ver quem era, perderia preciosos segundos!... Então eu simplesmente chegava e gritava:

– Ó o LEITE!!... Ó o LEITE!!... Ó o LEITE!!...

Eu era uma “tampinha” de criança!... E mesmo três anos depois, mal alcancei um metro e quarenta e cinco!... Baixinho, mas com voz potente!... E isso agradava alguns clientes, pois eles também não queriam perder tempo. Entre eles, o Gerente das Casas Pernambucanas, grande loja de uma rede nacional de venda de tecidos e vestuários.

Apesar de ser primavera, fazia frio de madrugada e eu embarcava no Jeep com os braços cruzados para não congelar, dentro da única camisa de manga curta, presente do meu avô “Coisão”. No ano seguinte vigorou a fartura, mas no final de 1971 ainda suportávamos a dura realidade trazida de Monte Castelo. Por isso, a vizinha portuguesa vendeu à minha mãe, por um baixo custo, uma pequena blusa de lã roxa feita de tricô!... Era quente no frio, mas suportável no calor, então eu andava para todos os lados com a minha blusa roxa e a calça jeans, para não pegar friagem, como dizia a minha mãe!...

Mas não trabalhei por muito tempo como leiteiro, pois era um emprego circunstancial até um dos filhos do fazendeiro voltar a exercer essa função. O importante é que no eterno ciclo do Efeito Borboleta para os amantes da teoria do caos, ou Providência Divina para os fiéis, esse precedente foi fundamental para que eu fosse contratado três anos depois na famosa Casas Pernambucanas e com Carteira de Trabalho assinada!...

Importante que fiz amizade com os filhos do vizinho, de forma que voltei inúmeras vezes à fazenda, seja para arrancar mandioca ou seja para comer frutas no pomar na entrada da Sede. Gostava muito de comer pinha, a conhecida fruta do conde. Todavia, não tinha nenhum riacho!... Eu sentia muitas saudades do riacho no fundo do sítio lá do “Barraco”!... Na verdade, até hoje sinto, mas desconfio que não seja do riacho e sim da infância!...

Felizmente um parente do fazendeiro tinha outra fazenda para os lados de Planaltina, não muito longe da cidade, uns sete quilômetros, onde além de um riacho, tinha uma represa até com um pequeno barco!... Um dia de sol quase no verão de dezembro fomos de Jeep conhecer a represa!... Tudo muito maravilhoso, encanto que só um límpido riacho consegue fornecer!... Logicamente eu estava com a minha preciosa blusa roxa. Voltamos irradiados de vida um pouquinho antes do almoço e antes que contasse qualquer novidade, minha mão perguntou:

– Cadê a blusa?!...

– Esqueci lá... – Consegui falar e até hoje não sei como isso foi acontecer!...

– Volta lá e pega sua blusa!... Dá os seus pulos!... Não é o que você sabe fazer?...

Sempre fui muito atento a detalhes. Não à toa que décadas depois, funcionário de um grande banco, deixava meus funcionários boquiabertos quanto acontecia algum problema e eu identificava de imediato a origem e solução!... Então eu sabia exatamente como chegar a tal fazenda. Almocei, bebi água e iniciei a jornada para recuperar o precioso vestuário.

E fui correndo!... Passei o Hospital do Dr. Oto, a entrada para o antigo Aeroporto, a longa descida até a serraria do Gentil e estimei que após a próxima subida já seria a fazenda!... Mas era apenas outro morro a ser vencido!... Por fim, lá pelo quarto morro, finalmente avistei a barragem da represa!... Nem entrei na Sede da fazenda. Passei a ponte e fui direto para as baias de ovelhas e lá estava a minha estimada blusa!... E voltei para casa, mas agora a andar tranquilamente. Levei três horas para ir e voltar e achei isso interessante. Descobri que assim poderia ir muito longe, um passo de cada vez. Bastava continuar a andar!...

Nos dias seguintes, resolvi consultar o oráculo particular quanto a um mistério que estava me intrigando:

– Mãe!... Mãe!... Ô mãe!...

– O que foi menino!... Onde machucou agora?!...

– Não machuquei em nenhum lugar!... Eu só queria fazer uma pergunta...

– Então pergunta logo, pois tenho mais o que fazer!...

– Por que o sítio do vô Ângelo fica no “Barraco”?... Não é estranho isso?... Como um sítio pode caber dentro de um barraco?...

– Oras!... – Ela riu e explicou. – Não é barraco de morar!... É só um apelido que deram para a região!... Na verdade, o nome é Ramal Dezoito.

– Hum!... Mas por que o nome é Ramal Dezoito?...

– Eu vou lá saber!... Deve ser alguma distância em quilômetros!... Mas o sítio de meu pai está a vinte e um quilômetros da cidade.

– Ah!... Era isso que eu queria saber...

Enquanto isso, o mistério continuava. Até hoje tenho receio de perguntar a meu pai. Sei lá!... São coisas da vida dele. Mas por que ninguém do sítio vinha nos visitar?... Será que sempre vinham rapidamente, quando eu não estava em casa?...

De fato, um pouco antes do Natal, cheguei em casa e minha mãe estava muito feliz!... Depois de vários anos, finalmente conseguira reencontrar a irmã lá de Cambira!... Eles vieram passar o Natal no sítio e fizeram uma rápida visita à nossa casa!... Minha mãe até se assustou com o quanto minhas primas estavam crescidas!...

Ah!... Há quanto tempo eu não via minhas primas?... E meus tios?... E o riacho?... As melancias?... Agora eu estava com quase um metro e vinte centímetros e também era menino da cidade!... Então no dia seguinte, levantei bem cedo e coloquei em prática meu plano secreto de ir a pé até o sítio de meu avô!...

Continue a andar!... Continue a andar!... Na teoria é tudo fácil!... Na prática é um cansaço terrível!... Então nem pensei duas vezes quando um velho senhor me ofereceu carona em sua carroça. Expliquei que não estava a fugir de casa. Apenas queria rever meus avós no “Barraco”!...


O velho ficou mudo uns minutos. Nem desconfiei, mas provavelmente ele estimava se deveria voltar à cidade e me entregar aos meus pais. Estávamos perto do ramal Sete e ele iria até perto do “Pé de Galinha”, o ponto onde à esquerda seguiria pelo estradão até o rio Ivaí, à direita seguiria até a vila São José, mas se fosse pela estrada do meio, cinco quilômetros à frente, chegaria ao “Barraco”.

Conversamos bastante. Talvez ele quisesse, lá no passado, ter essa coragem de largar tudo e seguir em busca de seus sonhos!... Ou talvez fosse demorado voltar à cidade. Ele concluiu que eu era bem esperto e poderia seguir em frente, mas não poderia contar da tal carona!...

Foi absurda a surpresa de todos quando me viram, um pouco antes do almoço, a caminhar tranquilamente em direção a casa grande do sítio, como quem volta para casa depois de outra aventura ali na esquina!... E logo deram um jeito de avisar aos meus pais que eu estava bem e em segurança lá no “Barraco”!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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