17 - O COLÉGIO
“Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem
na sombra, disse: Vai, Carlos, ser “gauche” (canhoto) na vida!” (Carlos
Drummond de Andrade).
Dizem que toda criança
recebe o acompanhamento de um “amigo imaginário”, um Ser em forma de criança, o
qual fica responsável por proteger e aconselhar, mas somente a criança pode
vê-lo e escutá-lo, isso até o limite de sete anos, quando toda a lembrança
quanto ao “amigo imaginário” é apagada de sua memória pelos agentes de Deus. Talvez
por isso eu não lembre. Mas se é verdade, acho que recebi um “inimigo íntimo”,
pois não foram poucas as vezes em que entrei em aventuras desastrosas que me
feriram e denegriram.
Por outro lado, também
dizem que todas as pessoas contam com um Ser protetor após esse período, o qual
acompanha e aconselha por toda a vida e é identificado como “voz da
consciência”. O fato concreto é que após o corte no joelho fiquei muito comportado,
na verdade, até retraído e essa “voz da consciência” passou a disciplinar os
meus passos pelo resto da vida.
– Qual a idade do menino?... Perguntou a
Secretária.
– Seis... – Respondeu o meu pai. – Mas vai
completar sete na próxima semana!...
– Se ele tem seis anos... – Decretou a
Secretária – Deve ser matriculado no Pré-Primário.
– Mas é o 1º ano escolar?... Perguntou o meu
pai, sem entender.
– Não!... – Respondeu a jovem senhora. – É uma
fase preparatória que antecede à 1ª série escolar.
– Mas por que ele não pode entrar na 1ª
série?...
– Ele não tem sete anos, idade mínima exigida
no momento da matrícula.
– Mas ele fará sete anos daqui uns poucos
dias!...
– Então precisa fazer a matrícula depois de
completar os sete anos.
– Neste caso, posso voltar a semana que vem?...
– Não pode. – Lamentou
a mulher. – É que o período de matrícula encerra essa semana.
Meu pai intimamente
ficou irritado com aquela situação absurda. Como poderia aceitar que apenas uma
semana fosse contar por um ano inteiro?... Ah!... Mal ele sabia que até para
cumprir o Serviço Militar obrigatório onze anos depois essa seria a mesma
situação burocrática!...
Enfim, meu pai se
conteve e fui matriculado no tal Pré-Primário, pois ele não soubera fazer a
pergunta certa. É que ao responder que “precisaria fazer a matrícula depois de
completar sete anos” a Secretária estava a indicar que poderia fazê-lo na escola
pública do município e não ali no Colégio Sagrado Coração de Jesus, Escola da
Igreja Católica, administrada por freiras, mas por conflito de interesse ela
não poderia simplesmente falar quanto a outra opção.
Décadas depois
inverteram radicalmente o entendimento da Lei e passaram a considerar o ano de
nascimento e não a idade no momento da matrícula. E nisso surgiu o problema
inverso para o meu primeiro filho, pois passou a estudar o ano inteiro com
coleguinhas um ano mais velho, por fazer aniversário em dezembro!... Não apenas
isso. É evidente que sofreu a sobrecarga do aprendizado antecipado e suportou
isso ano a ano, até entrar no Ensino Médio!...
Ao menos o colégio católico
não exigiu que eu fosse alfabetizado mediante uso obrigatório da mão direita,
tal qual aconteceu com o meu pai. Eu aprendi a escrever naturalmente com a mão
esquerda, em igual situação para os meus filhos.
Quanto as peripécias de meu pai na cidade para
alimentar a família, isso ficará para outra narrativa, pois é evidente que
afetaram diretamente as minhas memórias e merecem registro. Mas a presente narrativa
teve um ponto de cruzamento, pois cerca de três meses depois, quando meu pai estava
a soldar uma peça numa oficina mecânica, eu cheguei e falei:
– Oi pai!...
– O que você faz aqui, tão longe de casa?...
Perguntou o meu pai assustado, após retirar do rosto a máscara de solda.
– Oras!... – Respondi. – Vim conhecer onde o senhor
trabalha!...
– Mas como chegou aqui?!... É longe de casa!...
E como vai voltar?...
– Ah!... Os terrenos são todos quadrados!... É
até mais perto do que levar o almoço lá no cafezal!... Além do mais, eu prestei
muita atenção em cada casa e sei fazer o caminho de volta facilmente!...
– Então volta
imediatamente para casa!... E cuidado quando for cruzar a avenida!...
Essa visita inocente
foi decisiva nas atitudes de meu pai, pois nos dias seguintes mudamos de casa!...
Fomos morar na mesma rua da oficina, duas quadras abaixo do quarteirão da rodoviária
velha. Certamente era mais fácil a meu pai controlar a situação. Quanto ao colégio,
bastava descer sete quadras!... Além do mais, minha mãe estava grávida e em
abril nasceria o quinto filho!...
Infelizmente sequer
morávamos numa casa plena!... Na verdade, o proprietário isolou dois cômodos
para alugar a meu pai, de forma que tudo o que falavam do outro lado era
escutado no nosso lado e vice-versa. E o choro do recém-nascido incomodava
sobremaneira os vizinhos evangélicos, já cansados pelos muitos anos de
atribulações na vida.
Eu particularmente
gostava de ali morar, onde ficamos até o início de 1970, pois nunca passava
carros por ser final de rua e era totalmente gramada, o que permitia longas
brincadeiras com os vizinhos da frente, família de simpáticos negros, crianças
amistosas, situação nem sempre encontrada no colégio, onde eu era perseguido
por determinados meninos da cidade e isso me levou a também ser briguento, para
se defender. Bateu, levou!... É a arte da vida. Dessa casa, cinco situações
despertam minha memória.
A primeira foi a
existência de um forno a lenha em forma de iglu destinado a assar pães, o qual
estava muito danificado. E apesar dos sete anos, analisei a situação e
constatei que usaram barro na junção dos tijolos!... E fazer casinha de barro
era minha especialidade lá no riacho do “Barraco”. Então fiz o reparo do forno,
encaixando cada tijolo caído e colando-os com lama. Isso deixou minha mãe muito
feliz, pois poderia fazer pães caseiros para alimentar a família!...
A segunda foi uma
grande geada que aconteceu no final do inverno de 1969 e quando levantamos de
manhã, a água que ficara numa bacia de alumínio no lado de fora estava
totalmente congelada!... Nem nos tempos do sítio no “Barraco” eu presenciara
tamanho frio!... Usávamos umas blusas de nylon por fora com revestimento em fibras
por dentro, as quais eram chamadas de “japonas”. De noite, cobríamo-nos com
grossos acolchoados feitos com restos de tecidos e esses restos recebiam o nome
de “estopa”. Se meu pai tivesse ficado no sítio, estaria muito triste, pois
certamente a geada queimara todo o cafezal!...
A terceira envolve o meu irmão Claudinei, pois
no início de 1970 o Moacyr Franco gravara uma música em homenagem ao Garrincha,
célebre jogador de futebol, a qual toda hora tocava no rádio de meu pai. E
quando brincávamos no gramado, vez ou outra eu falava:
– Ca!... Ca!... – E imediatamente o meu irmão
respondia:
– O quê!... O quê!... – Mas eu terminava:
– Ca!... Cadê você?...
Ca!... Cadê você?... Você passou!... – E assim pegou o apelido de “Cacade” e
perdura até hoje!...
A quarta lembrança
envolve o colégio, pois a situação de pobreza era ampla e a obrigatoriedade de
uniforme escolar não se estendia aos caçados. Kichute e Conga viraram febre
somente alguns anos depois. Na época eu usava um sapato velho de borracha e era
constrangedor descer lentamente os sete quarteirões, pois se acelerasse o
passo, o rasgo na sola fazia a parte da frente virar e expor os dedões.
A miséria nivela por
baixo, humilha e reduz a autoestima. Tudo vira motivo de depreciação. Lembro-me
do constrangimento quando estava na soleira do colégio, uma agradável área no
piso superior que permitia ampla visão do pátio. De repente, os tais meninos
começaram a rir e mostrar a minha situação vexatória!... Somente então
constatei que colocara a calça do uniforme com a braguilha para trás!... Se já
era tímido pela origem caipira, imagina pela vergonha de ficar com as mãos para
trás o resto da aula!...
A quinta situação envolve o meu pai. É que os
vizinhos, donos da casa, costumavam fazer suas reuniões à noite e não raras
vezes “recebiam” o Espírito Santo e virava uma gritaria dos infernos, com o
perdão do trocadilho. E teve um dia onde meu pai voltou do serviço muito
cansado. Queria dormir. Mas começou a gritaria do outro lado e meu pai começou
a igualmente gritar do nosso lado!... De repente, fez um silêncio total e todos
foram repousar. No dia seguinte, a velha senhora falou para minha mãe:
– Seu marido “recebeu” o Espírito Santo ontem,
não foi?...
– É... – Limitou-se a
responder a minha mãe.
No mês seguinte, lá
estávamos nós em nova casa alugada, não tão longe, para os lados dos grandes
armazéns de beneficiamento de café!...
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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