quinta-feira, 7 de abril de 2022

17 - O COLÉGIO

17 - O COLÉGIO

“Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos, ser “gauche” (canhoto) na vida!” (Carlos Drummond de Andrade).

Dizem que toda criança recebe o acompanhamento de um “amigo imaginário”, um Ser em forma de criança, o qual fica responsável por proteger e aconselhar, mas somente a criança pode vê-lo e escutá-lo, isso até o limite de sete anos, quando toda a lembrança quanto ao “amigo imaginário” é apagada de sua memória pelos agentes de Deus. Talvez por isso eu não lembre. Mas se é verdade, acho que recebi um “inimigo íntimo”, pois não foram poucas as vezes em que entrei em aventuras desastrosas que me feriram e denegriram.

Por outro lado, também dizem que todas as pessoas contam com um Ser protetor após esse período, o qual acompanha e aconselha por toda a vida e é identificado como “voz da consciência”. O fato concreto é que após o corte no joelho fiquei muito comportado, na verdade, até retraído e essa “voz da consciência” passou a disciplinar os meus passos pelo resto da vida.

E em 1969, recém-chegado à cidade, fui matriculado no colégio de freiras e uma nova realidade ocupou os meus interesses. Mas nem tudo aconteceu conforme as previsões de meu pai, o qual alugou uma casa a menos de duzentos metros do colégio, quase na esquina da Prefeitura de Sansabel, ao lado da rinha de briga de galos, pois naquela época era uma prática permitida.

– Qual a idade do menino?... Perguntou a Secretária.

– Seis... – Respondeu o meu pai. – Mas vai completar sete na próxima semana!...

– Se ele tem seis anos... – Decretou a Secretária – Deve ser matriculado no Pré-Primário.

– Mas é o 1º ano escolar?... Perguntou o meu pai, sem entender.

– Não!... – Respondeu a jovem senhora. – É uma fase preparatória que antecede à 1ª série escolar.

– Mas por que ele não pode entrar na 1ª série?...

– Ele não tem sete anos, idade mínima exigida no momento da matrícula.

– Mas ele fará sete anos daqui uns poucos dias!...

– Então precisa fazer a matrícula depois de completar os sete anos.

– Neste caso, posso voltar a semana que vem?...

– Não pode. – Lamentou a mulher. – É que o período de matrícula encerra essa semana.

Meu pai intimamente ficou irritado com aquela situação absurda. Como poderia aceitar que apenas uma semana fosse contar por um ano inteiro?... Ah!... Mal ele sabia que até para cumprir o Serviço Militar obrigatório onze anos depois essa seria a mesma situação burocrática!...

Enfim, meu pai se conteve e fui matriculado no tal Pré-Primário, pois ele não soubera fazer a pergunta certa. É que ao responder que “precisaria fazer a matrícula depois de completar sete anos” a Secretária estava a indicar que poderia fazê-lo na escola pública do município e não ali no Colégio Sagrado Coração de Jesus, Escola da Igreja Católica, administrada por freiras, mas por conflito de interesse ela não poderia simplesmente falar quanto a outra opção.


Décadas depois inverteram radicalmente o entendimento da Lei e passaram a considerar o ano de nascimento e não a idade no momento da matrícula. E nisso surgiu o problema inverso para o meu primeiro filho, pois passou a estudar o ano inteiro com coleguinhas um ano mais velho, por fazer aniversário em dezembro!... Não apenas isso. É evidente que sofreu a sobrecarga do aprendizado antecipado e suportou isso ano a ano, até entrar no Ensino Médio!...

Ao menos o colégio católico não exigiu que eu fosse alfabetizado mediante uso obrigatório da mão direita, tal qual aconteceu com o meu pai. Eu aprendi a escrever naturalmente com a mão esquerda, em igual situação para os meus filhos.

Quanto as peripécias de meu pai na cidade para alimentar a família, isso ficará para outra narrativa, pois é evidente que afetaram diretamente as minhas memórias e merecem registro. Mas a presente narrativa teve um ponto de cruzamento, pois cerca de três meses depois, quando meu pai estava a soldar uma peça numa oficina mecânica, eu cheguei e falei:

– Oi pai!...

– O que você faz aqui, tão longe de casa?... Perguntou o meu pai assustado, após retirar do rosto a máscara de solda.

– Oras!... – Respondi. – Vim conhecer onde o senhor trabalha!...

– Mas como chegou aqui?!... É longe de casa!... E como vai voltar?...

– Ah!... Os terrenos são todos quadrados!... É até mais perto do que levar o almoço lá no cafezal!... Além do mais, eu prestei muita atenção em cada casa e sei fazer o caminho de volta facilmente!...

– Então volta imediatamente para casa!... E cuidado quando for cruzar a avenida!...

Essa visita inocente foi decisiva nas atitudes de meu pai, pois nos dias seguintes mudamos de casa!... Fomos morar na mesma rua da oficina, duas quadras abaixo do quarteirão da rodoviária velha. Certamente era mais fácil a meu pai controlar a situação. Quanto ao colégio, bastava descer sete quadras!... Além do mais, minha mãe estava grávida e em abril nasceria o quinto filho!...

Infelizmente sequer morávamos numa casa plena!... Na verdade, o proprietário isolou dois cômodos para alugar a meu pai, de forma que tudo o que falavam do outro lado era escutado no nosso lado e vice-versa. E o choro do recém-nascido incomodava sobremaneira os vizinhos evangélicos, já cansados pelos muitos anos de atribulações na vida.

Eu particularmente gostava de ali morar, onde ficamos até o início de 1970, pois nunca passava carros por ser final de rua e era totalmente gramada, o que permitia longas brincadeiras com os vizinhos da frente, família de simpáticos negros, crianças amistosas, situação nem sempre encontrada no colégio, onde eu era perseguido por determinados meninos da cidade e isso me levou a também ser briguento, para se defender. Bateu, levou!... É a arte da vida. Dessa casa, cinco situações despertam minha memória.

A primeira foi a existência de um forno a lenha em forma de iglu destinado a assar pães, o qual estava muito danificado. E apesar dos sete anos, analisei a situação e constatei que usaram barro na junção dos tijolos!... E fazer casinha de barro era minha especialidade lá no riacho do “Barraco”. Então fiz o reparo do forno, encaixando cada tijolo caído e colando-os com lama. Isso deixou minha mãe muito feliz, pois poderia fazer pães caseiros para alimentar a família!...

A segunda foi uma grande geada que aconteceu no final do inverno de 1969 e quando levantamos de manhã, a água que ficara numa bacia de alumínio no lado de fora estava totalmente congelada!... Nem nos tempos do sítio no “Barraco” eu presenciara tamanho frio!... Usávamos umas blusas de nylon por fora com revestimento em fibras por dentro, as quais eram chamadas de “japonas”. De noite, cobríamo-nos com grossos acolchoados feitos com restos de tecidos e esses restos recebiam o nome de “estopa”. Se meu pai tivesse ficado no sítio, estaria muito triste, pois certamente a geada queimara todo o cafezal!...

A terceira envolve o meu irmão Claudinei, pois no início de 1970 o Moacyr Franco gravara uma música em homenagem ao Garrincha, célebre jogador de futebol, a qual toda hora tocava no rádio de meu pai. E quando brincávamos no gramado, vez ou outra eu falava:

– Ca!... Ca!... – E imediatamente o meu irmão respondia:

– O quê!... O quê!... – Mas eu terminava:

– Ca!... Cadê você?... Ca!... Cadê você?... Você passou!... – E assim pegou o apelido de “Cacade” e perdura até hoje!...

A quarta lembrança envolve o colégio, pois a situação de pobreza era ampla e a obrigatoriedade de uniforme escolar não se estendia aos caçados. Kichute e Conga viraram febre somente alguns anos depois. Na época eu usava um sapato velho de borracha e era constrangedor descer lentamente os sete quarteirões, pois se acelerasse o passo, o rasgo na sola fazia a parte da frente virar e expor os dedões.

A miséria nivela por baixo, humilha e reduz a autoestima. Tudo vira motivo de depreciação. Lembro-me do constrangimento quando estava na soleira do colégio, uma agradável área no piso superior que permitia ampla visão do pátio. De repente, os tais meninos começaram a rir e mostrar a minha situação vexatória!... Somente então constatei que colocara a calça do uniforme com a braguilha para trás!... Se já era tímido pela origem caipira, imagina pela vergonha de ficar com as mãos para trás o resto da aula!...

A quinta situação envolve o meu pai. É que os vizinhos, donos da casa, costumavam fazer suas reuniões à noite e não raras vezes “recebiam” o Espírito Santo e virava uma gritaria dos infernos, com o perdão do trocadilho. E teve um dia onde meu pai voltou do serviço muito cansado. Queria dormir. Mas começou a gritaria do outro lado e meu pai começou a igualmente gritar do nosso lado!... De repente, fez um silêncio total e todos foram repousar. No dia seguinte, a velha senhora falou para minha mãe:

– Seu marido “recebeu” o Espírito Santo ontem, não foi?...

– É... – Limitou-se a responder a minha mãe.

No mês seguinte, lá estávamos nós em nova casa alugada, não tão longe, para os lados dos grandes armazéns de beneficiamento de café!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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