19 - A REVISTA
Não me lembro de
qualquer alvoroço no ano de 1970 quanto ao Brasil ganhar pela terceira vez o
mundial de futebol!... Mas lembro-me que as perseguições continuaram na 1ª
Série, principalmente de certo menino mais “robusto”. Até estimo que o ajudei a
emagrecer, pois queria vê-lo me pegar na corrida!... Quando
a situação apertava eu pulava os três degraus da escadaria para os fundos, pois
ele não teria essa coragem!...
E se fosse preciso
seguiria a correr até o vasto pomar de frutas diversas, onde chegaria ao
pezinho de carambola próximo ao muro dos fundos, pois isso me fazia lembrar do
sítio de minhas primas lá no “Barraco”, perto da benzedeira. No fim, acho que
esse menino apenas queria ser meu amigo, mas por caminhos tortos, tipo pai que
bate no filho e depois diz que ama!...
A Professora não era freira.
Era uma jovem contratada para alfabetizar os alunos do colégio. E parecia-me
muito simpática, para não confessar bonita, ainda mais quando distribuía seu
agradável e meigo sorriso!... É lógico que eu sentava lá atrás, não porque
quisesse fazer parte da turma do fundão. Era timidez mesmo. Encantava-me vê-la
explicar quais eram as letrinhas do alfabeto e o que formava em cada
combinação...
Ali nos fundos tinha
uma estante e algumas revistas e os alunos podiam folheá-las, por estímulo à
alfabetização. Foi o meu primeiro contato com uma revista em quadrinhos!...
Fiquei encantado com os desenhos!... Na capa tinha um índio a mandar um furioso
tigre perseguir três jovens assustados patinhos!... Um outro pato mais velho e
de óculos a observar espantado!...
Examinei cada quadrinho de todas as
histórias!... Fiquei a imaginar o que estariam a dizer naquelas combinações de
letrinhas escritas em cada quadrinho!... E quando chegou a segunda história,
fiquei mais encantado!... Falava de viagem a um outro planeta!... Realidade
mais espetacular e fabulosa!... O tal lugar era tão grande que lá podiam andar
por cima de uma espiga de milho!... A abóbora era gigante!... Lembrei-me do
sítio. Deus do céu!... Jamais ninguém passaria fome!...
– Consegue ler as letrinhas?... – Perguntou a
Professora ao agachar ao meu lado!...
– Não... – Gaguejei, após o susto de vê-la ali
tão pertinho!...
– Veja... – Disse ela amorosa, ao menos em
minha opinião. – Essa letra aqui é o “T”, depois vem essa letra “i” e juntas
formam “Ti”, mas ao juntar com esse “o” aqui, fica “Tio”. Essa aqui é a letra
“P” e ao juntar com essa letra “a”, fica “Pa”. Essas outras aqui em já falei,
então como fica essas quatros?...
– Pati... – Consegui responder. Mas em seguida,
tocou o sinal de fim de aula!...
– Hoje é sexta-feira. – Ela falou. – Você pode
levar a revista, mas devolve na segunda-feira, está bem?...
– Sim!... – Respondi
eufórico!... Mas só devolvi sessenta dias depois...
Fazia alguns meses que
estávamos na nova casa!... Essa tinha vários cômodos, sala de visitas e área de
repouso na frente!... E nem precisei reformar o forno!... Tinha até um pé de ipê
na frente, a propiciar enorme sombra!... Era ao lado de dois grandes armazéns
de beneficiamento de café, os quais estavam desativados, já que as geadas não
deixavam a produção aumentar.
Pela frente, todos
estavam devidamente lacrados, mas eu morava aos fundos, por onde tinha fácil
acesso e gostava muito de percorrer e vistoriar os enormes maquinários!... Acho
que hoje eu teria receio de entrar naqueles pavilhões escuros e cheios de
labirintos!... Mas naquela época tudo era aceitável!... Além do mais, não fazia
isso sozinho. Contava com a amizade e cumplicidade de dois vizinhos, quase a
mesma idade.
Na quadra de baixo
estavam ativos alguns armazéns de beneficiamento de arroz, cultura que
permanecia em alta, ainda mais a considerar as regiões ribeirinhas do rio Ivaí
e do grande rio Paraná!...
A parte abaixo do silo,
espaço destinado a entrada e saída de caminhões, formava exatamente as traves
de um gol!... Foi ali onde aprendi a gostar de “disputas”, modalidade
futebolística onde dois ou três meninos jogam contra igual número. Primeiro um
grupo chutava, três chutes para cada jogador; o outro grupo defendia, depois
invertiam e assim ganhava a equipe que fizesse mais gols!... Se rebatasse a
bola, iniciava o jogo de linha, onde o gol valia por dois!... E se batesse na trave
e voltasse, então o gol no jogo de linha valia por três!... Mas em caso de
escanteio, valia só um gol mesmo...
De repente, passei a
sentir satisfação em morar na cidade!... Até então estava desligado, talvez
ainda em recuperação psicológica após o corte no joelho. E com os novos amigos,
também brincávamos num campo de futebol nas proximidades. Ah! Os meninos
moravam na casa da esquina, antes tinha um terreno vazio, o qual chamávamos de
“data” e a seguir a “minha” casa!...
Após o campo de futebol
tinha a horta de um japonês bravo, mas muito provocador e afrontoso, pois fazia
questão de plantar as cenouras no extremo da propriedade, praticamente ao lado
do campo. E diante de tanta provocação, era inevitável nos sujeitarmos a
rastejar, quais soldados em guerra, até conseguir margear a horta e arrancar
algumas cenouras!... Ao menos o espólio da batalha era aproveitado!...
E fiquei aficionado em
ler revistas em quadrinhos, as quais chamávamos de gibi. Por muitos anos, criei
uma rede de apaixonados por gibis para trocar as revistas e passei a ler de
tudo: Tarzan, Tex, Akim, Zagor, Pato Donald, tio Patinhas, Homem-Aranha,
Batman, Super-Homem, X-Men, Cebolinha, Mônica, até mesmo Luluzinha e
Brotoeja!... Caiu na rede, era peixe!...
Por fim, uns cinco anos
depois, eis que encontrei a mesma revista tio Patinhas nº 50, de setembro de
1969, onde aprendi a ler!... E foi estranho, porque não mostrava o tigre na
capa!... Era no máximo um leopardo, talvez leão das montanhas. De qualquer
forma, foi um prazer incomensurável reler as peripécias do Professor Pardal ao
transportar os sobrinhos do tio Patinhas para Júpiter!...
Em agosto ou setembro o
colégio presenteou todos os alunos com um palhacinho tipo marionete, o qual
mexia os braços e as pernas quando puxasse um cordão. Os meus amigos vizinhos
ficaram encantados com aquilo!... Então tive uma ideia maquiavélica e
abominável!... Falei aos meninos que eu conseguiria outro igual, desde que eles
permitissem e me facilitassem um encontro com a irmã... Além das iniciais
contrariedades dos meninos, imediatamente minha consciência também começou a
reclamar da vergonhosa proposta!...
Esqueci de contar, mas
os meninos tinham uma jovem irmã, a qual nunca entrou conosco nos armazéns, mas
transferi a ela a atração pela professora!... Eles receberam enfáticas
advertências da mãe para jamais deixar a irmã aventurar-se pelos labirintos.
Então sem chances de aceitarem aquela proposta absurda!... Além do mais, o que
ela ganharia com isso?... Três então!... Prometi. Juntou a cobiça de todos os
lados, até dela!... Mas não nos armazéns, pois seria quebrar a promessa à mãe!...
Depois do campo de futebol
tinha uns morros de aterramento e por trás muitos pés de mamonas, antes da horta
do japonês. Combinamos que o encontro seria nesse intervalo escondido entre os
morros e o mamonal. Chegaram os três. Reclamei e os dois se distanciaram. No
fim, eu simplesmente não sabia o que fazer!... De repente, ao longe escutamos a
mãe da menina gritar por seu nome!... Ela correu em direção aos irmãos e
voltaram para casa!... Para todos os efeitos, estavam a brincar e ela foi
urinar atrás do morro!...
Eu fiquei por algum
tempo ali escondido, para despistar. Juro que se fosse nos dias atuais iria
achar que o japonês pegou o celular e ligou para a mãe da menina!... Mas
naquela época, só se fosse sinal de fumaça!... E como miséria pouca é bobagem,
minha consciência passou a me infernizar, ao ponto de nunca mais aceitar tal
tipo de encontro!... Além disso, acabou a amizade com os meninos, porque em
minha opinião o encontro não se realizou, mas eles entendiam que sim e queriam
os prometidos três palhaços!...
Quando acordei estava
com uma horrível dor de cabeça!... Até hoje o osso é afundado!... Mas não tinha
outras marcas no corpo. Desconfio que eles acharam que tinham me matado e
fugiram!... E fiquei sem saber o que fazer, pois não poderia reclamar à mãe deles,
por outro lado, jamais poderia contar à minha mãe!...
E naquele mesmo dia meu
pai chegou com a bombástica novidade!... Iríamos nos mudar para outra
cidade!...
---------------------------------------------------------------------------
Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
Nenhum comentário:
Postar um comentário