quinta-feira, 7 de abril de 2022

19 - A REVISTA

19 - A REVISTA

Não me lembro de qualquer alvoroço no ano de 1970 quanto ao Brasil ganhar pela terceira vez o mundial de futebol!... Mas lembro-me que as perseguições continuaram na 1ª Série, principalmente de certo menino mais “robusto”. Até estimo que o ajudei a emagrecer, pois queria vê-lo me pegar na corrida!... Quando a situação apertava eu pulava os três degraus da escadaria para os fundos, pois ele não teria essa coragem!...

E se fosse preciso seguiria a correr até o vasto pomar de frutas diversas, onde chegaria ao pezinho de carambola próximo ao muro dos fundos, pois isso me fazia lembrar do sítio de minhas primas lá no “Barraco”, perto da benzedeira. No fim, acho que esse menino apenas queria ser meu amigo, mas por caminhos tortos, tipo pai que bate no filho e depois diz que ama!...

A Professora não era freira. Era uma jovem contratada para alfabetizar os alunos do colégio. E parecia-me muito simpática, para não confessar bonita, ainda mais quando distribuía seu agradável e meigo sorriso!... É lógico que eu sentava lá atrás, não porque quisesse fazer parte da turma do fundão. Era timidez mesmo. Encantava-me vê-la explicar quais eram as letrinhas do alfabeto e o que formava em cada combinação...

Ali nos fundos tinha uma estante e algumas revistas e os alunos podiam folheá-las, por estímulo à alfabetização. Foi o meu primeiro contato com uma revista em quadrinhos!... Fiquei encantado com os desenhos!... Na capa tinha um índio a mandar um furioso tigre perseguir três jovens assustados patinhos!... Um outro pato mais velho e de óculos a observar espantado!...

Examinei cada quadrinho de todas as histórias!... Fiquei a imaginar o que estariam a dizer naquelas combinações de letrinhas escritas em cada quadrinho!... E quando chegou a segunda história, fiquei mais encantado!... Falava de viagem a um outro planeta!... Realidade mais espetacular e fabulosa!... O tal lugar era tão grande que lá podiam andar por cima de uma espiga de milho!... A abóbora era gigante!... Lembrei-me do sítio. Deus do céu!... Jamais ninguém passaria fome!...

– Consegue ler as letrinhas?... – Perguntou a Professora ao agachar ao meu lado!...

– Não... – Gaguejei, após o susto de vê-la ali tão pertinho!...

– Veja... – Disse ela amorosa, ao menos em minha opinião. – Essa letra aqui é o “T”, depois vem essa letra “i” e juntas formam “Ti”, mas ao juntar com esse “o” aqui, fica “Tio”. Essa aqui é a letra “P” e ao juntar com essa letra “a”, fica “Pa”. Essas outras aqui em já falei, então como fica essas quatros?...

– Pati... – Consegui responder. Mas em seguida, tocou o sinal de fim de aula!...

– Hoje é sexta-feira. – Ela falou. – Você pode levar a revista, mas devolve na segunda-feira, está bem?...

– Sim!... – Respondi eufórico!... Mas só devolvi sessenta dias depois...

Fazia alguns meses que estávamos na nova casa!... Essa tinha vários cômodos, sala de visitas e área de repouso na frente!... E nem precisei reformar o forno!... Tinha até um pé de ipê na frente, a propiciar enorme sombra!... Era ao lado de dois grandes armazéns de beneficiamento de café, os quais estavam desativados, já que as geadas não deixavam a produção aumentar.

Pela frente, todos estavam devidamente lacrados, mas eu morava aos fundos, por onde tinha fácil acesso e gostava muito de percorrer e vistoriar os enormes maquinários!... Acho que hoje eu teria receio de entrar naqueles pavilhões escuros e cheios de labirintos!... Mas naquela época tudo era aceitável!... Além do mais, não fazia isso sozinho. Contava com a amizade e cumplicidade de dois vizinhos, quase a mesma idade.

Na quadra de baixo estavam ativos alguns armazéns de beneficiamento de arroz, cultura que permanecia em alta, ainda mais a considerar as regiões ribeirinhas do rio Ivaí e do grande rio Paraná!...

A parte abaixo do silo, espaço destinado a entrada e saída de caminhões, formava exatamente as traves de um gol!... Foi ali onde aprendi a gostar de “disputas”, modalidade futebolística onde dois ou três meninos jogam contra igual número. Primeiro um grupo chutava, três chutes para cada jogador; o outro grupo defendia, depois invertiam e assim ganhava a equipe que fizesse mais gols!... Se rebatasse a bola, iniciava o jogo de linha, onde o gol valia por dois!... E se batesse na trave e voltasse, então o gol no jogo de linha valia por três!... Mas em caso de escanteio, valia só um gol mesmo...

De repente, passei a sentir satisfação em morar na cidade!... Até então estava desligado, talvez ainda em recuperação psicológica após o corte no joelho. E com os novos amigos, também brincávamos num campo de futebol nas proximidades. Ah! Os meninos moravam na casa da esquina, antes tinha um terreno vazio, o qual chamávamos de “data” e a seguir a “minha” casa!...

Após o campo de futebol tinha a horta de um japonês bravo, mas muito provocador e afrontoso, pois fazia questão de plantar as cenouras no extremo da propriedade, praticamente ao lado do campo. E diante de tanta provocação, era inevitável nos sujeitarmos a rastejar, quais soldados em guerra, até conseguir margear a horta e arrancar algumas cenouras!... Ao menos o espólio da batalha era aproveitado!...

Mas durante sessenta dias, sumi do mapa!... Nada de jogar bola no silo, menos ainda no campo, ou procurar algum tesouro nos armazéns, sequer alguma nova missão impossível na eliminação das afrontosas cenouras!... Voltava do colégio, almoçava, pegava a revista em quadrinhos e me escondia atrás de um dos armazéns, onde ficava horas e horas a combinar todas as letrinhas, até que finalmente consegui ler!...

E fiquei aficionado em ler revistas em quadrinhos, as quais chamávamos de gibi. Por muitos anos, criei uma rede de apaixonados por gibis para trocar as revistas e passei a ler de tudo: Tarzan, Tex, Akim, Zagor, Pato Donald, tio Patinhas, Homem-Aranha, Batman, Super-Homem, X-Men, Cebolinha, Mônica, até mesmo Luluzinha e Brotoeja!... Caiu na rede, era peixe!...

Por fim, uns cinco anos depois, eis que encontrei a mesma revista tio Patinhas nº 50, de setembro de 1969, onde aprendi a ler!... E foi estranho, porque não mostrava o tigre na capa!... Era no máximo um leopardo, talvez leão das montanhas. De qualquer forma, foi um prazer incomensurável reler as peripécias do Professor Pardal ao transportar os sobrinhos do tio Patinhas para Júpiter!...

Em agosto ou setembro o colégio presenteou todos os alunos com um palhacinho tipo marionete, o qual mexia os braços e as pernas quando puxasse um cordão. Os meus amigos vizinhos ficaram encantados com aquilo!... Então tive uma ideia maquiavélica e abominável!... Falei aos meninos que eu conseguiria outro igual, desde que eles permitissem e me facilitassem um encontro com a irmã... Além das iniciais contrariedades dos meninos, imediatamente minha consciência também começou a reclamar da vergonhosa proposta!...

Esqueci de contar, mas os meninos tinham uma jovem irmã, a qual nunca entrou conosco nos armazéns, mas transferi a ela a atração pela professora!... Eles receberam enfáticas advertências da mãe para jamais deixar a irmã aventurar-se pelos labirintos. Então sem chances de aceitarem aquela proposta absurda!... Além do mais, o que ela ganharia com isso?... Três então!... Prometi. Juntou a cobiça de todos os lados, até dela!... Mas não nos armazéns, pois seria quebrar a promessa à mãe!...

Depois do campo de futebol tinha uns morros de aterramento e por trás muitos pés de mamonas, antes da horta do japonês. Combinamos que o encontro seria nesse intervalo escondido entre os morros e o mamonal. Chegaram os três. Reclamei e os dois se distanciaram. No fim, eu simplesmente não sabia o que fazer!... De repente, ao longe escutamos a mãe da menina gritar por seu nome!... Ela correu em direção aos irmãos e voltaram para casa!... Para todos os efeitos, estavam a brincar e ela foi urinar atrás do morro!...

Eu fiquei por algum tempo ali escondido, para despistar. Juro que se fosse nos dias atuais iria achar que o japonês pegou o celular e ligou para a mãe da menina!... Mas naquela época, só se fosse sinal de fumaça!... E como miséria pouca é bobagem, minha consciência passou a me infernizar, ao ponto de nunca mais aceitar tal tipo de encontro!... Além disso, acabou a amizade com os meninos, porque em minha opinião o encontro não se realizou, mas eles entendiam que sim e queriam os prometidos três palhaços!...

Na semana seguinte eles simularam uma briga com troca de xingamentos. Começaram a atirar pedras um contra o outro, mas não para acertar!... Eu abri a passagem secreta, ou seja, removi a balaústra solta na cerca e fui até o meio do terreno vazio, atrás de um tronco, para tentar escutar o motivo da briga. Então eles consumaram o plano de vingança e ambos passaram a atirar pedaços de tijolos em minha direção!... Por fim, uma metade de tijolo acertou-me bem em cima da cabeça!... Imediatamente eles vieram em minha direção e foi tudo o que eu vi, pois desmaiei!...

Quando acordei estava com uma horrível dor de cabeça!... Até hoje o osso é afundado!... Mas não tinha outras marcas no corpo. Desconfio que eles acharam que tinham me matado e fugiram!... E fiquei sem saber o que fazer, pois não poderia reclamar à mãe deles, por outro lado, jamais poderia contar à minha mãe!...

E naquele mesmo dia meu pai chegou com a bombástica novidade!... Iríamos nos mudar para outra cidade!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

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MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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