quinta-feira, 7 de abril de 2022

18 - A OFICINA

18 - A OFICINA

Após instalar a família na edícula, a pequenina casa ao lado da rinha de briga de galos, imediatamente meu pai saiu a procura de serviço como Carpinteiro. Mas os primeiros dias foram preocupantes.

No sítio não tinha dinheiro, mas eram inúmeras as opções alimentícias, até mesmo pegar um mamão verde, fatiar e cozinhar. Mas na cidade, nada era de graça. Então não foram poucos os dias em que comemos pão com açúcar ou a fritura da farinha de mandioca no tradicional biju. Ou quantas vezes comi bolo de fubá!...

O irmão mais novo de meu pai também morava em Sansabel e era Torneiro Mecânico numa oficina bem estabelecida, mas já existia a concorrência de uma outra ainda pequena, ao lado de um posto de gasolina, quase esquina com o quarteirão da rodoviária velha. O dono prosperara e até comprara um grande terreno bem em frente, onde resolveu construir um enorme barracão e assim meu pai arrumou serviço de Carpinteiro, ao menos por uns sessenta dias!...

Ainda existia três grandes serrarias em Sansabel, pois após a devastação da colonização, quase todas migraram para a primeira cidade no então Mato Grosso, após cruzar o rio Paraná e em detrimento a regência da língua escrita, soava estranho falar: “As serrarias agora estão na Naviraí”, por isso, falavam simplesmente na “Viraí”.

No mundo, muitas civilizações a tudo devastaram e depois definharam em poucos anos. Mas no caso em questão, a grande diferença foram os maquinários, depois a energia elétrica, a mudança para cultivo de trigo ou soja, além de grandes fazendas de gado, o que permitiu a parte da população não migrar e adotar a pacata rotina de vida do interior em infinitas cidadezinhas no noroeste do Paraná!...

Naquela época a energia elétrica chegava somente em poucos centros urbanos. No sertão, para tocar tantas serrarias, usavam as “caldeiras”, ou seja, aquelas grandes máquinas a vapor também usadas nas locomotivas “Maria Fumaça”!...

O princípio de funcionamento era básico. As “caldeiras” eram circulares e cumpridas. Na primeira parte existia um espaço amplo onde queimavam carvão ou lenha e recebia o nome de “forno”. Na segunda e longa parte, existia inúmeras tubulações interligadas e com água dentro. O fogo aquecia a água, a qual se transformava em vapor e a contenção desse vapor gerava a pressão para mover grandes rodas circulares, geralmente aos lados, nas quais colocavam correias e assim moviam o outro mecanismo das serras!... Exatamente por isso, eram todas de grossas chapas de ferro!...

Ferro enferruja. Canos de ferro em contato com a água, fatalmente oxidam. Não eram raros os casos de caldeiras que explodiam, pois era preciso muito controle quando a quantidade de carvão ou lenha dentro do forno e qualquer descuido quanto aos relógios de nível de pressão resultavam em acidentes fatais!... Mas além dos relógios, contavam também com válvulas que permitiam liberar o excesso de vapor e reduzir a pressão. Exigia muitos empregados atentos!...

Por outro lado, com o tempo, os canos furavam ou soltavam e assim a caldeira perdia força e utilidade. E nesse ponto entram as oficinas de solda e recuperação de caldeiras, tão comuns naquela época. Era preciso arrancar a caldeira do lugar, lá no sertão de qualquer cidadezinha no interior de Mato Grosso, colocar em cima de um caminhão e transportá-la por muitos quilômetros de estradas esburacadas e poeirentas até a oficina de recuperação, onde cortavam e substituam as chapas danificadas mediante hábeis soldadores, com igual procedimento quando aos canos, além de trocarem os relógios e válvulas. Deixavam a caldeira novinha, até pintavam de verde e vermelho!...

Nos sessenta dias em que meu pai esteve envolvido na construção do novo barracão, ficou muito atento a essa rotina, inclusive, quanto ao funcionamento da Bambozzi circular, a máquina de solda existente naquela época. Basicamente, ela permitia controlar a energia elétrica mediante contato de ambos os fios da rede elétrica. Portanto, um cabo era prendido ao objeto a ser soldado e o outro cabo recebia em sua ponta um fino ferrinho chamado de “eletrodo”, o qual ao tocar o ponto a ser soldado gerava o curto circuito que derretia o eletrodo e também as partes a serem unidas pela solda.

A perícia de um bom Soldador estava em controlar esse curto circuito e disciplinar o movimento da mão de ponta a ponta, para lentamente permitir ao eletrodo derretido unir-se uniformemente a ambos os lados do objeto. Se não tivesse disciplina e controle, a solda ficava “carunchada”!... E isso implicava em também controlar a amperagem de energia na máquina, pois baixas amperagem resultavam em soldas fracas e altas fatalmente furavam e cortavam as chapas, ao invés de soldá-las.

Claro que tal curto circuito provocava um clarão imenso que poderia até cegar e provocar danos irreversíveis ao olho humano!... Não era raro soldadores com olhos inchados, principalmente à noite. Exatamente por isso, precisava sempre usar uma máscara de proteção, a qual contava com um vidro muito escuro na frente. Além disso, o derretimento somente ocorria se mantivesse uma distância mínima ideal, pois o eletrodo poderia grudar e fechar o circuito elétrico, onde a máquina suportava a sobrecarga para evitar incendiar toda a fiação da rede elétrica.

Meu pai tinha pouco estudo. Apenas a 4ª série primária. Mas tinha o dom de aprender apenas pela observação. Um certo dia o Soldador ponteou a chapa no local, ou seja, soldou só uma pontinha para fixar e saiu para almoçar. Meu pai examinou a situação. Estava tudo ali a espera de alguma atitude!... Era a última semana de construção do barracão!... Ele ligou a grande e redonda Bambozzi e soldou toda a chapa na caldeira!...

Antes do Soldador retornar, o dono da oficina passou pelo local e examinou o serviço de seu funcionário. No geral, encontrou o padrão esperado e conhecido, exceto naquela chapa!... Imediatamente falou:

– Quem mexeu aqui?!... Quem fez essa solda?!...

– Deve ter sido o Soldador. – Argumentou um outro Carpinteiro, tentando livrar o meu pai.

– Fui eu que fiz... – Apresentou-se o meu pai e confessou.

– Rapaz!... – Exclamou o dono da oficina. – É a melhor solda que eu já vi na minha vida!... Nada de caruncho, praticamente lisinho e por igual!... Onde você aprendeu a soldar assim?... E por que está trabalhando de Carpinteiro?...

– Aprendi aqui, de olhar o Soldador. – Explicou o meu pai. – E não sou Carpinteiro porque gosto. Faço porque é preciso!...

– Pode jogar fora esse martelo!... – Determinou o dono. – A partir de amanhã você também será Soldador em minha oficina!...

Naquela noite teve festa em casa!... Não de comida e bebida, mas de alegria!... Ainda não era a prosperidade esperada, mas sim um bom início. Tanto assim que no mês seguinte nos mudamos para uma casa mais perto da oficina, também da Rodoviária por onde chegavam alguns parentes, ou de uma chácara de hortaliças e de alguns mercados, chamados de armazéns!...

Para o meu pai iniciou-se uma intensa rotina de serviços, pois não era raro ver três ou quatro caldeiras no terreno em frente à oficina, à espera de reforma. Algumas até foram deixadas ali por seus proprietários, pois além da despesa de reforma, ainda arcavam e suportavam todas as circunstâncias do transporte. No fim, abandonavam a caldeira. E para o dono da oficina servia para tirar algumas peças ou mesmo de propaganda!...

E novamente a genialidade de meu pai entrou em ação, pois teve a ideia de usar a tração dos pneus de um Jeep para movimentar o gerador de energia da máquina de solda!... Isso revolucionou todo o processo de reforma, pois não mais era preciso trazer as enormes caldeiras até a oficina!... Agora era a oficina que se locomovia até o local da serraria, independente da presença de energia elétrica no local!...

Não demorou muito e a novidade se espalhou, ao ponto de meu pai precisar viajar com frequência para o então Mato Grosso, seja Naviraí, Santa Luzia, Caarapó, Laguna Caarapã, Amambai e até Cel Sapucaia!... Em menos de um ano os lucros do dono da oficina aumentaram sobremaneira, com prosperidade e fama em toda a região, tanto que comprou outro grande torno Nardini, chamado de carcaceiro, porque permitia retificar o eixo inteiro de caminhão!...

Foi quando a história azedou. Meu pai não queria ser Lavrador, nem Carpinteiro ou Soldador!... Queria ser Torneiro Mecânico, tal qual um irmão mais velho e o irmão mais novo!... Mas quando foi reivindicar a oportunidade, o dono da oficina não permitiu, alegando que lhe faltava escolaridade!... Na verdade, a questão nem era perder o ótimo Soldador, mas onde iria arrumar outro funcionário que se dispusesse a viajar com tanta frequência para aquele sertão do Mato Grosso?...

– Mas quá, sô!... – Respondeu o meu pai. – Meus irmãos são Torneiros com igual estudo!... Se eu posso reformar uma caldeira, entendo de rosca soberba ou rosca milímetro, sei usar o paquímetro, rapidamente posso aprender a ser Torneiro!...

Mas não teve jeito. O dono da oficina não queria abrir mão, além do mais, até contratara um jovem Torneiro Mecânico de uma outra oficina na cidade!... E foi assim que meu pai não teve dúvidas em abandonar o emprego e aceitar o convite para aprender a profissão de Torneiro na vizinha cidade de Santa Cruz de Monte Castelo!...

---------------------------------------------------------------------------

Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário