quinta-feira, 7 de abril de 2022

09 - A SECA

09 - A SECA

“Quando olhei a terra ardendo, tal qual fogueira de são João, eu perguntei a Deus do céu: Aí por que tamanha judiação?... Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação. Por falta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”. (Luiz Gonzaga).

No início da década de 1940 uma longa seca assolou o Nordeste e afetou a pequena propriedade no vale verde do outro lado da serra, em Espinosa MG, onde residia o meu avô Eurico. Pior situação aconteceu nas duas fazendas, onde todos os regaços quase secaram e imensas queimadas iluminaram o sertão, levando à morte quase toda a criação bovina de meu avô!...

E a cumprir o ditado, “Deus dá, Deus tira”, eis que alguns anos depois meu avô ganhou uma boa quantia em Salvador, na Loteria da Bahia, cidade a qual visitava com frequência e comprara o bilhete!... Por opção, preferiu adquirir uma grande boiada em Belo Horizonte MG, por intermediação de um médico, velho amigo da família. Infelizmente, por fatalidade, alguns bovinos estavam doentes e contaminaram até as rezes que sobreviveram à seca e após algum tempo tudo estava perdido!...

Sem gado, nada de carne, leite, queijos, peles e menos ainda recursos financeiros com a venda. Por outro lado, ainda era possível enfrentar a situação, pois o pequeno sítio propiciava a plantação da cana de açúcar, o que gerava a garapa e rapaduras ou mesmo o cultivo de mandioca, pois o consumo da farinha e polvilho sempre foi tradicional, fora abacaxis, bananais e outras culturas.


Entretanto, os irmãos Xavier de minha avó e a filha Brasilina migraram para o Paraná no início da década de 1950 e meu avô decidiu vender tudo e também buscar uma vida mais tranquila no próspero Paraná!... Mas não foi fácil vender as fazendas. Dizem que envolveu alguns parentes na compra, mas sem definir se eram da parte dos Xavier, Pereira ou Rebouças. Fato concreto é que meu avô recebeu uma quantia de entrada, com a promessa de mais três parcelas anuais pelos próximos anos. Há também conversas de que a venda ocorreu a um grupo americano, para exploração de minérios e pedras preciosas, vinculando o pagamento à produção.

Foi por isso que a família permaneceu na cidade de Alto Paraná, pois ano a ano, diversas vezes, meu avô compareceu à Agência do Banco do Brasil em Maringá PR. Não há registro de como fizeram essas vendas e quais documentos foram firmados. É provável que tenha efetuado as transferências das Escrituras em Cartórios, pois eram supostamente pessoas confiáveis. Meu pai acompanhou meu avô algumas vezes à Maringá, mas o dinheiro nunca chegou. Talvez sem produção, sem pagamentos...

Por fim, meu avô vendeu o arrendamento em Alto Paraná e comprou o sítio em Sansabel no “Barraco”, onde já residia sua primeira filha, a Brasilina. Mas a história da venda das fazendas ecoou por muito tempo. Não existia celular e o telefone era para poucos em grandes centros urbanos. Não há registros de cartas e a única ação concreta foi enviar o meu pai para “assuntar” a situação, já que os filhos mais velhos ou casaram ou buscaram outros destinos.

Meu pai recém completara dezoitos anos e estava muito empolgado com a viagem, pois queria muito rever a casa branca lá na serra!... Saiu de Minas um menino e voltaria um adulto!... Porém, além de não ser orientado quanto aos objetivos ocultos da viagem, também teve uma peculiar recomendação:

– Na “vorta”, você compra duas cartucheiras em “Sum” Paulo!... Determinou o meu Avô.

Naquela época era comum viajar de trem por todo o Brasil por um baixo custo!... Meu pai foi de ônibus até Maringá, pegou o trem até Bauru, depois outro até São Paulo e assim sucessivamente até chegar a Mamonas, distrito de Espinosa, a última cidade antes de entrar em território Baiano. (Não confundir com o município de Mamonas).

Estava eufórico após a longa viagem!... Queria visitar todos os parentes!... Cada riacho na serra; cada vereda no campo; aquele mesmo campo onde o meu pai e mais quatro irmãos, uns oito anos antes, foram se aventurar e um irmão mais velho resolveu colocar fogo na vegetação seca!... A caatinga queimou por três longos dias!... De longe avistavam a fumaça e as chamas no horizonte!... Até o Delegado percorreu todas as fazendas, a questionar quem teria feito tamanha maldade!... Enfim, visitar a misteriosa pedra que se equilibrava em outra absurdamente minúscula; rever os imensos paredões onde o dia começava às nove horas e às três da tarde o sol sumia...

 

De início, visitou alguns parentes e nem percebeu se havia alguma animosidade. Aliás, difícil extrair de um mineiro algum entusiasmo ou antipatia. É sempre uma conversa mansa, boa prosa e cordialidade, perguntas desconexas, mas objetivas. O fato é que logo encontrou um amigo da família, pelo que entendi, o mesmo que fizera o facão para minha avó, o qual rapidamente levou o meu pai para o seu rancho, onde permaneceu até o dia de regressar. O tal amigo só apresentou um semblante aliviado quando o “Girsin” embarcou no trem!...

Desembarcou em São Paulo e deveria cumprir a expressa recomendação. Saiu com sua mala típica da época, dessas feitas com laminado marrom a imitar madeira. Estava com fome. Entrou numa lanchonete de parada de ônibus. E qual não foi sua surpresa ao encontrar seu irmão mais velho a tomar um café, com a típica farda de motorista de ônibus!

– Fulano!... Que surpresa encontrá-lo aqui! – Exclamou o meu pai.

– Não sou esse não! – Apressou-se em corrigir o tal homem.

– Uai sô! – Estranhou o meu pai. – Não está me reconhecendo?... Sou o Gilson, seu irmão!...

– Era o que me faltava!... – Resmungou o sujeito contrariado. – Mas não podemos conversar aqui. Vamos lá fora...

– Mas por quê?... Perguntou o meu pai, sem entender.

Saíram para um local afastado, quase atrás de um ônibus. E meu tio explicou:

– Não entenda mal. Eu também estou feliz em vê-lo assim, homem feito! – E após um silêncio profundo, prosseguiu: – Mas é muito suspeito!...

– Não entendo... – Questionou o meu pai. – Você sumiu! Não dá notícias há tempos!... Eu ainda era menino quando sua esposa e seus filhos chegaram à Estação de Mamonas. Disseram que você sumiu durante a viagem!...

– Pois é... – Justificou o meu tio. – Tive de fazer isso!... Eu me envolvi numa confusão quando era Motorista de Táxi e precisei deixá-los em local seguro, pois era perigoso se ficassem ao meu lado. Se eu morresse, quem cuidaria deles aqui em São Paulo?... A melhor solução que encontrei foi levá-los para a casa de nosso pai lá em Minas...

– Você é Motorista desse ônibus?... Você faz essa rota para Nova Andradina, lá no Mato Grosso?...

– Mas que caca de galinha, Gilson! Quem deu essas informações a você?... Só falta dizer que já passou lá em casa e conversou com minha esposa e filhos!...

– Você tem outra família?!... Exclamou o meu pai admirado.

– Para com isso Gilson!... Vai dizer que foi só coincidência a gente se encontrar e até sabe qual rota eu faço?!...

– Eu li no letreiro do ônibus... Juro por nossa mãe!...

– Só pode ser brincadeira do destino... – Injuriou o meu tio. – Você não poderia aparecer em pior momento!...

– Não entendo...

– Não percebe?... Se você me achou, outros podem achar!... Agora eu estou em risco e a minha atual família também!...

– Meu irmão, não foi minha culpa!... Eu só entrei para comprar um pão com mortadela e tomar um café!...

– Ara, sô!... Para cima de mim com essa conversa?... Saiu lá de Espinosa para tomar um café aqui em São Paulo?...

– Não é isso!... Eu vim de Minas, mas fui lá a passeio!... Agora moramos num sítio no Paraná e nosso pai falou para passar em São Paulo e comprar duas cartucheiras!...

Foi assim que o meu tio orientou o meu pai onde poderia comprar as tais espingardas, isso após muitas explicações, pois meu tio ficara estupefato com as notícias recentes e também com o inusitado encontro. E na despedida, encarecidamente pediu:

– Gilson, por favor, não conte a ninguém sobre o nosso encontro, senão serei obrigado a sumir outra vez!...

E antes de embarcar no trem para Bauru, ainda na estação, dois Policiais pararam o meu pai, exigiram documentos, qual origem, para onde iria e por fim questionaram qual o conteúdo da mala, onde estava a preciosa carga, devidamente desmontada. Mas meu pai teve sangue frio e após deitar a mala ao chão, cuidadosamente a abriu, de forma a aparecer somente o conteúdo pessoal. Então, respondeu:

– São as minhas roupas!...

De fato, eram as roupas por cima. Falara a verdade com tamanha convicção que os Policiais desistiram de averiguar, já que era apenas mais outro matuto lá de Minas. Desejaram boa viagem e assim aconteceu. Dois dias depois o meu pai chegou ao sítio lá no “Barraco”!

A vida de sanfoneiro prosseguiu e seis anos depois eu nasci!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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