quinta-feira, 7 de abril de 2022

10 - FRITURAS

10 - A FRITURA

Levava uma vida sossegada. Gostava de sombra e água fresca. Meu Deus, quanto tempo eu passei, sem saber!... (Rita Lee).

Fazia quase um ano que retornáramos de Cambira. Mal dava para notar a cicatriz do corte na perna. Nascera a segunda filha. Minha mãe estava conformada com a precária situação no ranchinho de terra batida, afinal, a vida era boa, meu pai sempre trazia alguma caça, pois era hábil com a cartucheira vermelha ou mesmo variedade de peixes, além de ovos azuis e carne de galinha de Angola!

E finalmente permitiram que eu fosse junto à cidade!... Percorremos os vinte quilômetros numa velha carroça puxada por um paciente cavalo. Na cidade, praticamente todos os sitiantes deixavam suas carroças num terreno baldio logo na entrada, um ao lado do outro e amarravam os cavalos em alguma beira de rua onde o capim fosse farto. Também existia locais com bebedouro para os animais, logicamente fornecidos por gentis comerciantes, desde que comprasse em seus estabelecimentos. Nessa condição, lembro-me bem de um Açougueiro quase na esquina, dois quarteirões acima da Prefeitura.

Eu era um pirralho com um pouco mais de meio metro. Mas nunca esqueci essa viagem porque fiquei encantado quando passamos em frente à Loja Pernambucanas! Achei maravilhosos aqueles tecidos de todas as cores pendurados nas imensas portas!... Era tudo muito bonito e colorido e parecia que eu estava flutuando no ar, mas em verdade, era o meu pai a segurar-me a mão e puxar para frente, qual uma “malinha”!...

Oito anos depois quis o destino que eu fosse trabalhar justamente nas Casas Pernambucanas!... E passei muito tempo sem entender, por que eu achara imensas aquelas portas!... Um mistério!... Eram portas normais!... E levei anos para entender que tudo era uma questão de perspectiva!... De tão pequeno, as portas pareciam enormes em relação ao meu tamanho!... Mas não foi o meu primeiro contato com a tal da perspectiva.

Lembro-me que sempre falavam em hectares, mas hoje eu só consigo raciocinar em metros. E sei que cada sítio de dez hectares tinha um pouco mais de cem metros entre as divisas. Interessante que os sitiantes fizeram as casas para suas famílias praticamente numa mesma faixa, cerca de mil metros abaixo da estrada. Com isso, criou-se um espaço aberto e contínuo entre os sítios, o que propiciou melhor convivência, conhecimento entre todos, muitos namoros e casamentos!... Era uma nova estradinha interna para uso dos familiares e conhecidos.

Mas tinha duas exceções: A primeira, entre o sítio de meu avô mineiro e o novo sítio do avô italiano, pois tinha dois outros sítios no intervalo, mas somente um tinha esse livre acesso. O outro era pasto para criação de gado, tal qual já existia em parte do sítio de meu avô mineiro.

A outra exceção era bem mais distante, justamente no primeiro sítio de meu avô italiano, pois fora comprado por uma família de japoneses, cujos costumes eram estranhos e diferentes. Para um mineiro, bastava tomar um cafezinho e já era amigo. Para um italiano, bastava comer e beber na mesma mesa e já era da família. Mas os japoneses eram fechados e arredios. Difícil de entender e conviver. A maioria sequer falava a nossa língua. Imagino que não compreendiam porque os vizinhos teimavam em querer passar por dentro da propriedade. Tanto assim que nossas famílias preferiam dar a volta pela estrada, o que aumentava o percurso em muitas vezes mais!...

Mas o fato é que a distância entre as casas de meus avós era de menos de quatrocentos metros e a metade era por dentro de um pasto, com eventuais bois e vacas. Um belo dia, eu criei coragem e resolvi me aventurar até onde havia diversão e alegria, ou seja, entre meus tios e a família italiana. Além do mais, minha mãe já estava lá em alguma missão secreta e levou apenas as filhas pequenas!... Fiquei aos cuidados da avó mineira.

E tive a aventura mais apavorante de minha vida até aquele momento!... Primeiro por andar descalço naquele estreito corredor, mas sobretudo, porque eram aterradoras as enormes moitas de capim colonião, em minha perspectiva, passavam de três metros de altura!...

E se eu desse de encontro com um touro bravo?... E se saísse um bicho do meio do capim?... De repente, levantou em minha frente uma imensa codorna com seu típico barulho ao bater as asas!... Quase tive um treco!... Foi nesse dia que jurei: Iria crescer e fazer um estilingue para matar todas essas aves!... Não precisei fazer isso. O “progresso” fez.

As pessoas julgam que somos todos iguais. Perante a Lei deve ser, mas na prática, no dia a dia, somos todos diferentes e isso torna a vida encantadora!... Levei muito tempo para entender que as pessoas enxergam em tons diferentes, escutam em vibrações distintas, os gostos não são os mesmos e até raciocinam diferente!... E entre gentilícios são inúmeras as divergências de gostos e cultura e eu convivi com isso desde pequeno. Sou uma mistura do calmo e arredio mineiro com o italiano amável e explosivo. Como dizem os italianos: Sou de veneta!...

Exatamente pelas diferenças culturais, não foi por acaso que meu avô mineiro escolheu comprar aquele sítio. É que no outro lado morava um conterrâneo de Minas, o qual construiu nos fundos de sua casa um engenho, tocado por cavalos a andarem em círculos e com isso moerem grandes quantidades de cana de açúcar. Com a garapa faziam rapaduras simples, ou com mamão ralado, com abóbora, amendoim e até doce de leite!...

E no sítio de meu avô ele fez uma grande roda, a qual era girada por um dos filhos, de forma a também girar as engrenagens de uma moenda de mandioca administrada por outro filho, cujo caldo virava o cobiçado polvilho e a polpa era despejada numa grande chapa comprida, previamente aquecida por baixo por muito fogo a lenha. Aquela substância era espalhada pela chapa, sacudida, remexida, cozinhada até surgir a útil farinha de mandioca, tão do agrado dos mineiros em pratos diversos.

Ao contrário do predomínio na plantação de café, desde o início, meu avô mineiro reservou a parte do sítio com acesso ao riacho para a criação de gado, conforme costume trazido de Minas Gerais. Até construiu uma mangueira, para o controle e manejo bovino. Leite sempre foi essencial na cultura mineira, principalmente na confecção de queijos.

Já no lado italiano, fora o consumo de vinho e massas, a preocupação era com a preservação de carne, pois refrigeradores só em filmes de ficção. Exatamente por isso, era comum a criação suína em grandes chiqueiros ao ar livre, pois além de carne, fornecia a banha, a qual era armazenada em grandes latas e dentro uma boa quantidade de pedaços de carne!... Quando aquecida, a banha ficava líquida e permitia colocar ou retirar os pedaços de carne. Após esfriar, endurecia qual gelo e protegia a carne. Era a geladeira da época!...

Apesar de também reservarem a parte com acesso ao riacho para a criação bovina, raramente faziam queijos. Por outro lado, plantavam muitas árvores frutíferas e hortaliças, além de diversificarem com o cultivo de milho, batata doce, abacaxi, quiabo, melancia, arroz e feijão, exatamente por isso, construíram uma tuia de armazenamento. E nada se perdia, pois quaisquer sobras eram destinadas aos porcos.

Um belo dia, minha avó Marcelina reuniu as três filhas casadas da região para derreterem a gordura de porco em enormes tachos. Era provável que cada filha depois levasse uma lata de banha e carne para os seus lares, no caso de minha mãe, o modesto ranchinho. De repente, minha avó gritou:

– Mama di Dio! – Tirou as mãos de frente à boca, exclamou: – Nizita! Corre aqui!... Não é o Zezinho ali?!...

Pois é!... Era eu a despontar na divisa, após cruzar o sítio vizinho, depois da aventura relatada. E após um severo sermão, fui conduzido para dentro de casa, com a expressa recomendação de não sair em hipótese alguma!... Ou nem pensar em chegar perto da varanda do poço d’água, antes da tuia!...

Eu até conseguia entender o motivo de permanecer preso. Mas depois de ficar injuriado por algum tempo, comecei a questionar a recomendação de não chegar perto da varanda. O que será que lá acontecia que eu não poderia ver?... Por outro lado, se eu simplesmente saísse pela porta da cozinha, todos veriam!... Então sai pela porta da frente, dei a volta pelo pomar de tangerinas, passei pelos fundos da horta de verduras, subi numa pilastra de sustentação atrás da varanda e cheguei até a coluna por baixo do telhado. Mas fui descoberto e uma das minhas tias falou:

– Nizita!... Olha o Zezinho ali em cima!...

Eu me assustei e cai ao lado de um dos tachos de gordura!... Infelizmente o braço esquerdo caiu dentro e fritou!... Foi uma dor insuportável!... Passei vários dias com o braço enfaixado com a Erva de Santa Maria. Mas graças ao poder rejuvenescedor das células infantis, com o tempo ficaram apenas poucos indícios do incidente no corpo.


Já na alma, as marcas foram profundas, pois além do escândalo da família italiana, com acusações de endiabrado e impossível, quando retornamos ao ranchinho, minha avó Jovelina estava muito aborrecida!... E antes de minha mãe falar qualquer coisa, ela apenas vaticinou:

– Você não bate nesse menino!... É por isso que ele faz essas artes!... Tem de bater nesse menino!... Tem de bater todos os dias, até ele aprender!...

Enfim, se a questão era aprender, até hoje, como diria o Filósofo Sócrates: “Só sei que nada sei”!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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