10 - A FRITURA
Levava uma vida
sossegada. Gostava de sombra e água fresca. Meu Deus, quanto tempo eu passei,
sem saber!... (Rita Lee).
Fazia quase um ano que
retornáramos de Cambira. Mal dava para notar a cicatriz do corte na perna.
Nascera a segunda filha. Minha mãe estava conformada com a precária situação no
ranchinho de terra batida, afinal, a vida era boa, meu pai sempre trazia alguma
caça, pois era hábil com a cartucheira vermelha ou mesmo variedade de peixes,
além de ovos azuis e carne de galinha de Angola!
E finalmente permitiram
que eu fosse junto à cidade!... Percorremos os vinte quilômetros numa velha
carroça puxada por um paciente cavalo. Na cidade, praticamente todos os sitiantes
deixavam suas carroças num terreno baldio logo na entrada, um ao lado do outro
e amarravam os cavalos em alguma beira de rua onde o capim fosse farto. Também existia
locais com bebedouro para os animais, logicamente fornecidos por gentis
comerciantes, desde que comprasse em seus estabelecimentos. Nessa condição,
lembro-me bem de um Açougueiro quase na esquina, dois quarteirões acima da
Prefeitura.
Eu era um pirralho com
um pouco mais de meio metro. Mas nunca esqueci essa viagem porque fiquei
encantado quando passamos em frente à Loja Pernambucanas! Achei maravilhosos
aqueles tecidos de todas as cores pendurados nas imensas portas!... Era tudo
muito bonito e colorido e parecia que eu estava flutuando no ar, mas em
verdade, era o meu pai a segurar-me a mão e puxar para frente, qual uma
“malinha”!...
Oito anos depois quis o
destino que eu fosse trabalhar justamente nas Casas Pernambucanas!... E passei
muito tempo sem entender, por que eu achara imensas aquelas portas!... Um mistério!...
Eram portas normais!... E levei anos para entender que tudo era uma questão de
perspectiva!... De tão pequeno, as portas pareciam enormes em relação ao meu
tamanho!... Mas não foi o meu primeiro contato com a tal da perspectiva.
Lembro-me que sempre
falavam em hectares, mas hoje eu só consigo raciocinar em metros. E sei que
cada sítio de dez hectares tinha um pouco mais de cem metros entre as divisas.
Interessante que os sitiantes fizeram as casas para suas famílias praticamente
numa mesma faixa, cerca de mil metros abaixo da estrada. Com isso, criou-se um
espaço aberto e contínuo entre os sítios, o que propiciou melhor convivência,
conhecimento entre todos, muitos namoros e casamentos!... Era uma nova
estradinha interna para uso dos familiares e conhecidos.
Mas tinha duas
exceções: A primeira, entre o sítio de meu avô mineiro e o novo sítio do avô italiano,
pois tinha dois outros sítios no intervalo, mas somente um tinha esse livre
acesso. O outro era pasto para criação de gado, tal qual já existia em parte do
sítio de meu avô mineiro.
A outra exceção era bem
mais distante, justamente no primeiro sítio de meu avô italiano, pois fora
comprado por uma família de japoneses, cujos costumes eram estranhos e
diferentes. Para um mineiro, bastava tomar um cafezinho e já era amigo. Para um
italiano, bastava comer e beber na mesma mesa e já era da família. Mas os
japoneses eram fechados e arredios. Difícil de entender e conviver. A maioria
sequer falava a nossa língua. Imagino que não compreendiam porque os vizinhos
teimavam em querer passar por dentro da propriedade. Tanto assim que nossas
famílias preferiam dar a volta pela estrada, o que aumentava o percurso em muitas
vezes mais!...
Mas o fato é que a
distância entre as casas de meus avós era de menos de quatrocentos metros e a
metade era por dentro de um pasto, com eventuais bois e vacas. Um belo dia, eu
criei coragem e resolvi me aventurar até onde havia diversão e alegria, ou
seja, entre meus tios e a família italiana. Além do mais, minha mãe já estava
lá em alguma missão secreta e levou apenas as filhas pequenas!... Fiquei aos
cuidados da avó mineira.
E se eu desse de
encontro com um touro bravo?... E se saísse um bicho do meio do capim?... De
repente, levantou em minha frente uma imensa codorna com seu típico barulho ao
bater as asas!... Quase tive um treco!... Foi nesse dia que jurei: Iria crescer
e fazer um estilingue para matar todas essas aves!... Não precisei fazer isso.
O “progresso” fez.
As pessoas julgam que
somos todos iguais. Perante a Lei deve ser, mas na prática, no dia a dia, somos
todos diferentes e isso torna a vida encantadora!... Levei muito tempo para
entender que as pessoas enxergam em tons diferentes, escutam em vibrações
distintas, os gostos não são os mesmos e até raciocinam diferente!... E entre
gentilícios são inúmeras as divergências de gostos e cultura e eu convivi com
isso desde pequeno. Sou uma mistura do calmo e arredio mineiro com o italiano
amável e explosivo. Como dizem os italianos: Sou de veneta!...
Exatamente pelas
diferenças culturais, não foi por acaso que meu avô mineiro escolheu comprar
aquele sítio. É que no outro lado morava um conterrâneo de Minas, o qual
construiu nos fundos de sua casa um engenho, tocado por cavalos a andarem em
círculos e com isso moerem grandes quantidades de cana de açúcar. Com a garapa faziam
rapaduras simples, ou com mamão ralado, com abóbora, amendoim e até doce de
leite!...
E no sítio de meu avô ele
fez uma grande roda, a qual era girada por um dos filhos, de forma a também
girar as engrenagens de uma moenda de mandioca administrada por outro filho,
cujo caldo virava o cobiçado polvilho e a polpa era despejada numa grande chapa
comprida, previamente aquecida por baixo por muito fogo a lenha. Aquela
substância era espalhada pela chapa, sacudida, remexida, cozinhada até surgir a
útil farinha de mandioca, tão do agrado dos mineiros em pratos diversos.
Ao contrário do
predomínio na plantação de café, desde o início, meu avô mineiro reservou a
parte do sítio com acesso ao riacho para a criação de gado, conforme costume
trazido de Minas Gerais. Até construiu uma mangueira, para o controle e manejo
bovino. Leite sempre foi essencial na cultura mineira, principalmente na
confecção de queijos.
Já no lado italiano,
fora o consumo de vinho e massas, a preocupação era com a preservação de carne,
pois refrigeradores só em filmes de ficção. Exatamente por isso, era comum a
criação suína em grandes chiqueiros ao ar livre, pois além de carne, fornecia a
banha, a qual era armazenada em grandes latas e dentro uma boa quantidade de
pedaços de carne!... Quando aquecida, a banha ficava líquida e permitia colocar
ou retirar os pedaços de carne. Após esfriar, endurecia qual gelo e protegia a
carne. Era a geladeira da época!...
Apesar de também
reservarem a parte com acesso ao riacho para a criação bovina, raramente faziam
queijos. Por outro lado, plantavam muitas árvores frutíferas e hortaliças, além
de diversificarem com o cultivo de milho, batata doce, abacaxi, quiabo,
melancia, arroz e feijão, exatamente por isso, construíram uma tuia de
armazenamento. E nada se perdia, pois quaisquer sobras eram destinadas aos porcos.
Um belo dia, minha avó Marcelina reuniu as três
filhas casadas da região para derreterem a gordura de porco em enormes tachos.
Era provável que cada filha depois levasse uma lata de banha e carne para os
seus lares, no caso de minha mãe, o modesto ranchinho. De repente, minha avó gritou:
– Mama di Dio! – Tirou as
mãos de frente à boca, exclamou: – Nizita! Corre aqui!... Não é o Zezinho
ali?!...
Pois é!... Era eu a
despontar na divisa, após cruzar o sítio vizinho, depois da aventura relatada.
E após um severo sermão, fui conduzido para dentro de casa, com a expressa
recomendação de não sair em hipótese alguma!... Ou nem pensar em chegar perto
da varanda do poço d’água, antes da tuia!...
Eu até conseguia entender o motivo de
permanecer preso. Mas depois de ficar injuriado por algum tempo, comecei a questionar
a recomendação de não chegar perto da varanda. O que será que lá acontecia que
eu não poderia ver?... Por outro lado, se eu simplesmente saísse pela porta da
cozinha, todos veriam!... Então sai pela porta da frente, dei a volta pelo
pomar de tangerinas, passei pelos fundos da horta de verduras, subi numa
pilastra de sustentação atrás da varanda e cheguei até a coluna por baixo do
telhado. Mas fui descoberto e uma das minhas tias falou:
– Nizita!... Olha o
Zezinho ali em cima!...
Já na alma, as marcas foram profundas, pois
além do escândalo da família italiana, com acusações de endiabrado e impossível,
quando retornamos ao ranchinho, minha avó Jovelina estava muito aborrecida!...
E antes de minha mãe falar qualquer coisa, ela apenas vaticinou:
– Você não bate nesse
menino!... É por isso que ele faz essas artes!... Tem de bater nesse menino!...
Tem de bater todos os dias, até ele aprender!...
Enfim, se a questão era
aprender, até hoje, como diria o Filósofo Sócrates: “Só sei que nada sei”!...
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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