quinta-feira, 7 de abril de 2022

28 - A FUGA

28 - A FUGA

No início de 1973 ganhei um álbum de figurinhas metálicas redondas num sorteio na escola!... Nunca tive sorte em jogos e sorteios. Exatamente por isso, nem faço jogos em loterias. Lógico que sempre peço a Deus algum milagre financeiro. Desconfio que um dia Ele vai mandar um Emissário para me dizer:

– Que ganhar?... Ao menos jogue!... Ó infeliz!...

E também lógico que naquela época já praticavam o marketing de dependência e fazem isso até hoje, por exemplo, fabricante de impressoras e modelos quase a preço de custo, mas depois cobram 30% do valor a cada troca de cartuchos!... Mas naquela época, interromperam a aula para um sorridente rapaz apresentar o álbum e as figurinhas metálicas e autocolantes!... E até sortearam DOZE álbuns!... A apresentação foi tão convincente que nunca rezei tanto em minha vida!... Queria muito ganhar e no último sorteio, falaram o meu nome!...

Após o vacilo das moedas, não mais voltamos ao sítio. O velho Fordão teve uma crise de defeitos e parou de funcionar. Até minha mãe parou de repassar os preciosos dois Cruzeiros para assistir a Matinê no Cinema, isso porque eu não entendia de economia, pois se fosse somar os valores para comprar os tais envelopes com as figurinhas daria cinco vezes mais!...

Por outro lado, o precioso álbum foi fundamental para formar a rede de troca de gibis!... Dentro da escola passamos a trocar as figurinhas e a Diretora permitia, já que deixara os vendedores entrarem!... E de figurinhas passamos para as revistas em quadrinhos!...

Depois surgiram outros álbuns e com isso, a prática do “bafo”, onde os competidores colocavam algumas figurinhas no chão e batiam com a palma da mão em cima e rapidamente recolhiam!... Se as figurinhas virassem com o “abafo”, ganhava quantas figurinhas virassem!... Os mais espertos batiam e viravam a mão para um lado, pois isso ajudava a virar...

Após a última surra, meu pai cumpriu a palavra e me arrumou um empregado num posto de gasolina bem em frente a oficina. Eu até queria trabalhar, mas surgiu uma situação além de minhas forças!... Até então todos os gibis apresentavam a figura de Tarzan bem semelhante ao ator dos filmes. 

Mas eis que surgiu um novo desenhista, o qual fez um Tarzan mais selvagem, com cara de malvado e cabelos longos!... Até tinha um filho: Korak!... E justamente em meu primeiro mês de trabalho esse gibi caiu na Rede!... Entrei dentro de um velho pneu de trator ao lado do posto de gasolina e fiquei ali o dia inteiro a examinar cada maravilhoso quadrinho!...

Os vícios nos consomem. Se podia do Tarzan, era aceitável quaisquer outros gibis e o local era incrivelmente aconchegante!... No fim, depois de um mês, o dono do posto chamou meu pai e explicou:

– “Girso”, eu até queria ajudar, mas esse seu filho é vagabundo e não quer trabalhar!... Ele fica com essas malditas revistas em mãos o tempo todo!... Lamento, mas ele não pode trabalhar aqui...

Foi por isso que tive de fazer o buraco secreto abaixo do assoalho. Era preciso proteger as minhas preciosidades. Mas algumas foram sacrificadas nas chamas da incompreensão!... Terrível!... Enfim, vida que segue e logo virei Auxiliar de Limpeza na oficina.

O dono da oficina estava com algumas caldeiras velhas a ocupar espaço, além de outros vários maquinários. Vez ou outra passava o caminhão de ferro velho e levava os itens menores para alguma Fundição em Presidente Prudente ou São Paulo. Essas fundições derretiam os metais, seja ferro, alumínio ou bronze e revendiam os blocos para os donos de oficinas de tornearias modelarem peças!... Então o dono da oficina montou uma fundição ao lado da oficina, quase nos fundos da casa onde morávamos!...

E assim virei Auxiliar de Moldagem na nova fundição. O processo era simples. Muito fogo na parte de baixo de uma chaminé e jogavam os metais ou o carvão de ferro num espaço mais acima, os quais derretiam em elevadas temperaturas e caiam em tonéis com longos braços. Em seguida, derramavam o líquido desses tonéis em pequenos orifícios nas caixas previamente moldadas com areia úmida, quase argila e prensada de acordo com o desenho da peça desejada!...

Faziam esses moldes em duas partes. Uma fixa no chão e a outra em caixa móvel de madeira com braços, a qual depois era cuidadosamente virada e ajustada por cima da parte fixa, exatamente por isso, precisava ser bem prensada sem a mínima falha, principalmente nas quinas, para o metal encher por completo todo o molde. Um Técnico fazia esse serviço. Eu era auxiliar e gostava, pois era desafiador.

Depois de algum tempo de aprendizado, o velho Técnico pediu para eu pegar o rabicho, ou seja, um fio solto no chão com uma lâmpada na ponta, pois o serviço de moldagem exigia iluminar e examinar cada detalhe!... Ao pegar o rabicho, relei o dedo na parte metálica da lâmpada de 220 volts!... Levei um choque tão intenso que fui jogado uns três metros distante e poderia ter morrido!... Então o Técnico chamou meu pai e explicou:

– Gilson, esse seu filho é muito inteligente!... Aprende fácil e na maioria das vezes nem precisa ensinar!... Ele deveria estudar, pois poderá ser um excelente Engenheiro ou o que ele quiser ser. Melhor ele trabalhar no Comércio ou em um Banco. Mas aqui é um lugar muito perigoso!... Lamento, mas não posso deixá-lo correr esse risco...

Com isso, ao menos por algum tempo, voltei a ser estudante e explorador!... Após a praça da velha rodoviária, na esquina, tinha um grande armazém e os donos vendiam de tudo, até maquinários agrícolas!... Eram parentes de nossos vizinhos e isso abriu caminhos e portas, ao ponto de conhecer cada pedacinho do armazém, os depósitos usados como garagens e as residências, mas nunca peguei um mísero prego!...

Eles moravam numa casa aos fundos e na frente deixaram para alugar uma bonita casa. E por ironia do destino, quem veio morar nessa casa?... A mãe dos gêmeos lá de Monte Castelo!... Mas agora minha família não era mais de miserabilidade extrema. Até pelo contrário, quem dava duro para sustentar a família era a Professora. Hoje eu teria empatia, mas naquela época eu precisava soltar a violência reprimida e quando encontrei os gêmeos iniciamos uma longa briga de boxe!... Eu dei alguns socos, mas na versão dos donos do armazém, também levei outros!... Mas dessa vez a Professora não fez nada. Acho que poderíamos chamar de “igualdade social”, mas estimo que alguns chamem de vingança!...

Numa dessas explorações encontrei os meus tios!... Vieram à cidade fazer tratamento dentário, ou na realidade daquela época, extrair alguns dentes. Para minha sorte, após as extrações, recomendava-se o consumo de alimentos frios para evitar sangramentos. E por pura solidariedade fui com eles à soverteria!... Saboreamos e rimos muito!... Ou seja, entre nós estava tudo bem. Tudo tranquilo. Até questionaram nossa ausência no sítio e expliquei que o Fordão quebrara, eu estudava de manhã e trabalhava à tarde, ora aqui ora ali. Não sei se eles acreditaram na versão, mas o problema é que eu não acreditava...

Algum tempo depois resolvi investigar de vez qual era a real situação. O caminho eu já sabia. Continue a andar!... Continue a andar!... Mas dessa vez usaria um boné e resolvi fazer todo o percurso a pé, pois seria mais rápido do que pegar carona em alguma carroça ou charrete. Não daria explicações a ninguém, pois geralmente quem muito fala, alguma coisa tem a esconder. Se fosse preciso, falaria a verdade que importava: “Vou logo ali, no ramal sete, onde mora minha tia”. Se fosse depois: “Vou ali pertinho, na venda do “Barraco”. E ainda depois: “Ali no sítio de meu avô Coisão”!...

Levantei bem cedinho e iniciei a segunda fuga. De onde eu morava era mais prático pegar uma saída alternativa e passar perto da pastagem onde depois fizeram a atual rodoviária e também construíram um conjunto habitacional. Naquela época era um carreador de fazenda, mas quando fizeram o asfalto para Santa Mônica e Tapira, décadas depois, escolheram justamente essa saída. Corri por alguns quilômetros, outros apenas caminhei, mas tudo sem exagerar. Por fim, cheguei à entrada do sítio!... Desci o carreador e dessa vez poucos ficaram surpresos com minha chegada. A maioria estava no cafezal.

E dessa vez não foi preciso mandar recado para meus pais. Eu deveria ter escondido o material escolar. Ao perceber a ausência do boné, virginiana intuitiva qual era, minha mãe logo entendeu que seu filho aquariano sem amarras fugira novamente!... Mandou avisar o meu pai na oficina. E por milagre, o Fordão voltou a funcionar!...

Nem precisei dar muitas explicações no sítio, pois logo meu pai chegou!... Nem entrou na casa. Rapidamente cumprimentou a todos no velho estilo mineiro e fez-me entrar no carro!... Explicou que eu tinha aula e quase reprovara no ano anterior, 3ª série, o que era verdade, apesar de estar bem na 4ª série, mas alguns detalhes ele omitia. Por fim, o argumento inquestionável: Estava com muitos serviços na oficina e precisava voltar!...

Quanto ao Fordão, contou que finalmente conseguira consertar para vender, pois estava com algumas dívidas a pagar. De fato, vendeu o Fordão e comprou uma moderníssima televisão Telefunken com transistores e não aquelas problemáticas válvulas da televisão Colorado que queimavam constantemente. E ficamos com essa televisão por muitos anos!...

Foi assim que no final de 1973 meu pai me bateu pela última vez. Mas eu já estava com quase doze anos e nem ligava. Esse é o problema de castigo físico. Funciona enquanto estimula o medo. Quando executa, assusta por algum tempo. Depois banaliza e vira mera sujeição sem sentido. Melhor explicar. Se não consegue, o problema não está na criança!...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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