28 - A FUGA
No início de 1973 ganhei um álbum de figurinhas
metálicas redondas num sorteio na escola!... Nunca tive sorte em jogos e
sorteios. Exatamente por isso, nem faço jogos em loterias. Lógico que sempre
peço a Deus algum milagre financeiro. Desconfio que um dia Ele vai mandar um
Emissário para me dizer:
– Que ganhar?... Ao
menos jogue!... Ó infeliz!...
Por outro lado, o
precioso álbum foi fundamental para formar a rede de troca de gibis!... Dentro
da escola passamos a trocar as figurinhas e a Diretora permitia, já que deixara
os vendedores entrarem!... E de figurinhas passamos para as revistas em quadrinhos!...
Depois surgiram outros álbuns
e com isso, a prática do “bafo”, onde os competidores colocavam algumas
figurinhas no chão e batiam com a palma da mão em cima e rapidamente
recolhiam!... Se as figurinhas virassem com o “abafo”, ganhava quantas
figurinhas virassem!... Os mais espertos batiam e viravam a mão para um lado,
pois isso ajudava a virar...
Mas eis
Os vícios nos consomem. Se podia do Tarzan, era
aceitável quaisquer outros gibis e o local era incrivelmente aconchegante!...
No fim, depois de um mês, o dono do posto chamou meu pai e explicou:
– “Girso”, eu até
queria ajudar, mas esse seu filho é vagabundo e não quer trabalhar!... Ele fica
com essas malditas revistas em mãos o tempo todo!... Lamento, mas ele não pode
trabalhar aqui...
Foi por isso que tive
de fazer o buraco secreto abaixo do assoalho. Era preciso proteger as minhas
preciosidades. Mas algumas foram sacrificadas nas chamas da incompreensão!...
Terrível!... Enfim, vida que segue e logo virei Auxiliar de Limpeza na oficina.
O dono da oficina estava
com algumas caldeiras velhas a ocupar espaço, além de outros vários maquinários.
Vez ou outra passava o caminhão de ferro velho e levava os itens menores para
alguma Fundição em Presidente Prudente ou São Paulo. Essas fundições derretiam
os metais, seja ferro, alumínio ou bronze e revendiam os blocos para os donos
de oficinas de tornearias modelarem peças!... Então o dono da oficina montou
uma fundição ao lado da oficina, quase nos fundos da casa onde morávamos!...
E assim virei Auxiliar
de Moldagem na nova fundição. O processo era simples. Muito fogo na parte de
baixo de uma chaminé e jogavam os metais ou o carvão de ferro num espaço mais
acima, os quais derretiam em elevadas temperaturas e caiam em tonéis com longos
braços. Em seguida, derramavam o líquido desses tonéis em pequenos orifícios
nas caixas previamente moldadas com areia úmida, quase argila e prensada de
acordo com o desenho da peça desejada!...
Faziam
esses moldes em duas partes. Uma fixa no chão e a outra em caixa móvel de madeira com
braços, a qual depois era cuidadosamente virada e ajustada por cima da parte
fixa, exatamente por isso, precisava ser bem prensada sem a mínima falha,
principalmente nas quinas, para o metal encher por completo todo o molde. Um
Técnico fazia esse serviço. Eu era auxiliar e gostava, pois era desafiador.
Depois de algum tempo de aprendizado, o velho
Técnico pediu para eu pegar o rabicho, ou seja, um fio solto no chão com uma
lâmpada na ponta, pois o serviço de moldagem exigia iluminar e examinar cada
detalhe!... Ao pegar o rabicho, relei o dedo na parte metálica da lâmpada de
220 volts!... Levei um choque tão intenso que fui jogado uns três metros
distante e poderia ter morrido!... Então o Técnico chamou meu pai e explicou:
– Gilson, esse seu
filho é muito inteligente!... Aprende fácil e na maioria das vezes nem precisa
ensinar!... Ele deveria estudar, pois poderá ser um excelente Engenheiro ou o
que ele quiser ser. Melhor ele trabalhar no Comércio ou em um Banco. Mas aqui é
um lugar muito perigoso!... Lamento, mas não posso deixá-lo correr esse
risco...
Com isso, ao menos por
algum tempo, voltei a ser estudante e explorador!... Após a praça da velha rodoviária,
na esquina, tinha um grande armazém e os donos vendiam de tudo, até maquinários
agrícolas!... Eram parentes de nossos vizinhos e isso abriu caminhos e portas,
ao ponto de conhecer cada pedacinho do armazém, os depósitos usados como
garagens e as residências, mas nunca peguei um mísero prego!...
Eles moravam numa casa aos
fundos e na frente deixaram para alugar uma bonita casa. E por ironia do
destino, quem veio morar nessa casa?... A mãe dos gêmeos lá de Monte
Castelo!... Mas agora minha família não era mais de miserabilidade extrema. Até
pelo contrário, quem dava duro para sustentar a família era a Professora. Hoje
eu teria empatia, mas naquela época eu precisava soltar a violência reprimida e
quando encontrei os gêmeos iniciamos uma longa briga de boxe!... Eu dei alguns
socos, mas na versão dos donos do armazém, também levei outros!... Mas dessa
vez a Professora não fez nada. Acho que poderíamos chamar de “igualdade
social”, mas estimo que alguns chamem de vingança!...
Numa dessas explorações
encontrei os meus tios!... Vieram à cidade fazer tratamento dentário, ou na
realidade daquela época, extrair alguns dentes. Para minha sorte, após as
extrações, recomendava-se o consumo de alimentos frios para evitar
sangramentos. E por pura solidariedade fui com eles à soverteria!... Saboreamos
e rimos muito!... Ou seja, entre nós estava tudo bem. Tudo tranquilo. Até questionaram
nossa ausência no sítio e expliquei que o Fordão quebrara, eu estudava de manhã
e trabalhava à tarde, ora aqui ora ali. Não sei se eles acreditaram na versão,
mas o problema é que eu não acreditava...
Algum tempo depois
resolvi investigar de vez qual era a real situação. O caminho eu já sabia.
Continue a andar!... Continue a andar!... Mas dessa vez usaria um boné e
resolvi fazer todo o percurso a pé, pois seria mais rápido do que pegar carona
em alguma carroça ou charrete. Não daria explicações a ninguém, pois geralmente
quem muito fala, alguma coisa tem a esconder. Se fosse preciso, falaria a
verdade que importava: “Vou logo ali, no ramal sete, onde mora minha tia”. Se
fosse depois: “Vou ali pertinho, na venda do “Barraco”. E ainda depois: “Ali no
sítio de meu avô Coisão”!...
Levantei bem cedinho e
iniciei a segunda fuga. De onde eu morava era mais prático pegar uma saída
alternativa e passar perto da pastagem onde depois fizeram a atual rodoviária e
também construíram um conjunto habitacional. Naquela época era um carreador de fazenda,
mas quando fizeram o asfalto para Santa Mônica e Tapira, décadas depois,
escolheram justamente essa saída. Corri por alguns quilômetros, outros apenas
caminhei, mas tudo sem exagerar. Por fim, cheguei à entrada do sítio!... Desci
o carreador e dessa vez poucos ficaram surpresos com minha chegada. A maioria
estava no cafezal.
E dessa vez não foi
preciso mandar recado para meus pais. Eu deveria ter escondido o material escolar.
Ao perceber a ausência do boné, virginiana intuitiva qual era, minha mãe logo
entendeu que seu filho aquariano sem amarras fugira novamente!... Mandou avisar
o meu pai na oficina. E por milagre, o Fordão voltou a funcionar!...
Foi assim que no final
de 1973 meu pai me bateu pela última vez. Mas eu já estava com quase doze anos
e nem ligava. Esse é o problema de castigo físico. Funciona enquanto estimula o
medo. Quando executa, assusta por algum tempo. Depois banaliza e vira mera
sujeição sem sentido. Melhor explicar. Se não consegue, o problema não está na
criança!...
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Do livro:
MEMÓRIAS do Menino Esquecido.
ISBN:
978-65-00-38553-3
Registro
Autoral CBL - DA-2022-017822.
© Sobrinho, José
Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial,
total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.
Se
quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:
MEMÓRIAS
do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores
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