quinta-feira, 7 de abril de 2022

14 - ANDANÇAS

14 - ANDANÇAS

“Caminheiro que lá vai indo, para o rumo de minha terra, por favor, faça parada, na casa branca da serra!... Ali mora uma velhinha, chorando um filho seu!... Essa velha é minha mãe e o seu filho sou eu!... Vai caminheiro, leva esse recado meu”!... (Liu e Leu / Lourenço e Lourival).

Em 1967 um jovem rapaz chegou aflito a segunda porteira. Não tinha como anunciar sua presença lá da estrada, por isso, precisou de muita coragem para adentrar o carreador, após a porteira grande, pois bem viu a pastagem a indicar a presença de bovinos, situação muito distante de sua realidade na cidade de São Paulo!... Mas se viera de tão longe, como poderia desistir sem ao menos tentar?... Então encarrou os mil metros, com ou sem bois ou vacas!... Por fim, teve medo de passar a segunda porteira e gritou:

– Ôôô de casa!... Não atira não!...

Meu avô saiu da casa a imaginar quem seria aquele rapaz!... E que história era essa de não atirar?!... “Acaso tem aqui algum pistoleiro”?... Meu pai também se aproximou e caminharam até perto da porteira. A feição do rapaz era muito típica de um Nunes Pereira, mas por prudência e desconfiado, meu avô questionou:

– Diga lá a que vem!...

– Disseram-me que aqui é o sítio de Eurico Nunes Pereira, é verdade?...

– Mas por que quer saber?... – Respondeu o meu Avô, com outra pergunta.

– É que ele é meu avô...

– Você é filho de quem?... – Perguntou o meu avô.

– Sou filho de Fulano, o filho mais velho...

– Mas quá, sô!... – Esbravejou meu avô Eurico. – Eu conheço os filhos de Fulano!... Moram no interior de São Paulo com a família da mãe, após ele sumir no mundo!...

– Mas ele teve outra família... – Explicou o rapaz, com certa vergonha. – Não mora aqui o tio Gilson?... Ele pode confirmar isso, pois esteve com o meu pai em São Paulo!... Eu sei das duas cartucheiras. E por isso também sei do sítio nessa região...

O meu avô olhou abismado para o meu pai!... Fez-se um silêncio absurdo a permitir escutar de longe a respiração ofegante de meu avô!... Por fim ele conseguiu perguntar:

– “Girso”!... Que história é essa de você encontrar Fulano em São Paulo e não me contar?!...

E assim finalmente meu pai revelou o encontro que tivera com o irmão mais velho, conforme explicado em outra narrativa, de forma a confirmar que aquele rapaz era realmente um neto. E então meu avô perguntou:

– Mas cadê seu pai?... Por que está aqui sozinho?...

– Ah... – Lamentou o rapaz. – Eu tinha esperança que ele estivesse aqui!... Ou que soubessem onde está, pois faz algum tempo que sumiu e não temos notícias!... Nem sabemos se ainda está vivo...

Na verdade, eu não presenciei essa conversa. Escrevo o que posteriormente escutei. É que na época eu estava acamado, após o desmaio, com a cabeça inchada, depois das muitas mordidas de marimbondos e que me levaram a cair do pé de laranja.

Mas existe justificativa!... Não era safra. Era a única laranja ainda ostentosa lá em cima!... Então tive de escalar, mas por infelicidade, esbarrei na caixa de marimbondos, camuflada covardemente atrás das folhas!... E não vou escrever que foi a pior dor, pois teve agravante em Monte Castelo, quando repeti a proeza por causa de uma única amora, mas essa história ficará para o tempo adequado.

O rapaz ficou no sítio alguns dias e voltou desanimado para São Paulo, a cumprir seu destino de criança esquecida. Meu pai ficou cabisbaixo. O que teria acontecido?... Por que seu irmão mais velho cumprira a ameaça de abandonar a família?... Será que foi morto na função de motorista lá por aquelas bandas de Nova Andradina, no sertão de Mato Grosso?...

Enfim, quem poderia imaginar que nas andanças do destino, iríamos encontrá-lo nas margens do rio Amambaí, dez anos depois!... E essa história tem relevância em minhas narrativas porque talvez colocasse mais uma pimenta no caldo amargo entre o meu avô e meu pai, seja por contar ao retornar de Minas, seja por contar somente naquele momento. E assim seguiu a rotina naquele ano.

Alguns meses depois, bem perto do Natal, meu avô recebeu a visita do filho que ficara em Alto Paraná!... Veio com a esposa, um filho e três filhas num belíssimo DKV Munga!... Era uma espécie de Jeep, mas com algumas melhorias e um estranho escorregador na frente, por cima dos para-lamas. E para as crianças foi uma festa maravilhosa examinar cada detalhe daquele carro!...


Interessante que as três primas tinham a letra “e” por inicial no nome, mas claro que eu não entendia nada disso!... Entretanto, gostei da sonoridade de um dos nomes, porque lembrava canivete. E comecei a gracejar: Canivete, canivete... De repente, não sei quem foi, soltou a frase:

– Elizete, canivete, põe no fogo, não derrete!...

Ah!... Minha prima mostrou que tinha nas veias o sangue Nunes Pereira e ficou furiosa!... Partiu para cima dos meninos!... Isso aumentou mais ainda a balbúrdia e virou uma farra onde todos começaram a cantar: “Elizete canivete, põe no fogo e não derrete!... Elizete canivete, põe no fogo e não derrete”!...

Depois de Alto Paraná meu tio se mudou para a fronteira do antigo Mato Grosso e pelas coincidências da vida, atualmente a minha prima Elizete também mora em Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul, após o desmembramento territorial em 1979!...

E a exceção ao mencionar seu nome em minhas narrativas, além da referência da antiga brincadeira de crianças – o que hoje seria eticamente repreensível – é que ela autorizou com boa vontade e empatia, sem melindres pessoais, apesar da situação desconfortável da época, por entender que são apenas narrativas literárias.

Aliás, quando meus avôs moravam em Alto Paraná, o arrendamento de café era bem ao lado da cidade e a casa onde residiam era praticamente a última da área urbana. E nas proximidades também morava outra família de Minas, mas oriunda de Belo Horizonte, cuja filha mais velha, uma jovem moça, fazia alguns serviços domésticos e de babá na casa desse meu tio, pai da Elizete.

A casa de meu tio e sua oficina de tornearia era perto de um posto de gasolina. Uma das irmãs dessa jovem moça, a quem vamos chamar de Eliane, a título de visitar a irmã, sempre ficava na região, pois se apaixonara por um rapaz empregado no posto. E minha avó Jovelina, vendo a situação, resolveu ajudar. Passou a sempre conversar com a jovem Eliane e lhe dar bons e preciosos conselhos quanto a essas questões amorosas.

E por essas estranhas andanças da vida, quase duas décadas depois, por questões religiosas, eu então um jovem rapaz, conheci a Eliane em Naviraí!... Mas nem imaginava que ela conhecera a minha avó!... E alguns anos depois ela se mudou para Campo Grande, mas a amizade verdadeira permaneceu, tanto que cheguei a visitá-la algumas vezes.

O tempo passou. Virei bancário. Fui transferido para Campo Grande. Casei e tive dois filhos. A Eliane passava por uma situação difícil, após o fracasso numa tentativa malograda em ser empresária. Eu estava muito bem como bancário e precisava de alguém de confiança para cuidar de meus filhos e ajudar minha esposa nas tarefas domésticas.

Juntamos nossas necessidades e a contratei com carteira assinada, o que contribuiu para que ela aposentasse anos depois!... E somente nesta circunstância descobri que ela conhecera a minha avó Jovelina!... Recebeu carinho e atenção de minha avó e depois repassou aos meus filhos, em mais uma história nas andanças da vida!...

Mas em 1967 não foram apenas as crianças que gostaram do modelo diferente do DKV Munga. Meu pai e o irmão mais novo, – o qual em breve iria casar e morar na casa onde eu nasci, – eis que eles também ficaram fascinados!... Não apenas pelo carro, mas por toda a situação em si, pois trabalhavam na dura lida no cafezal, ou nos cuidados com o gado, até aceitavam empreitadas na região, mas nem de longe conseguiriam comprar um veículo tão vistoso!...

Ambos ficaram encantados com a perspectiva de também serem Torneiros Mecânicos!... Mal sabiam que a realidade nem sempre é o que mostra a aparência e que em tudo na vida é preciso muita dedicação e empenho para conseguir algum resultado.

Não sei se chegaram a conversar sobre isso, mas tem situações que nem é preciso!... Os fatos falam por si. A realidade espanta, mas encanta e seduz. Portanto, não foi por mera coincidência que menos de quatro anos depois ambos estavam na cidade e na profissão de Torneiros Mecânicos!

“Caminheiro que lá vai indo” ...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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