quinta-feira, 7 de abril de 2022

04 - A VIAGEM

04 - A VIAGEM

“Quem vai chorar? Quem vai sorrir? Quem vai ficar? Quem vai partir? Pois o trem está chegando, está chegando à estação. É o trem das sete horas, é o último do sertão”! – (Raul Seixas).

Finalmente o trem chegou!... Ninguém chorou. Mas a maioria continuava a sorrir. Contudo, embarquei sozinho e na longa viagem de minha vida, na sina de menino esquecido, fui acumulando memórias, tanto as boas, quais pequenas flores a acalentar a esperança, quanto as ruins, pois me ensinaram a desviar-se de certas pedras do caminho!...

Embarquei!... Os demais ficaram na estação e logo seguiram seus destinos. Cada um na eterna rotina de casar, ter filhos, envelhecer e até esquecer-se de pequenas alegrias como se nunca aconteceram!... Ou em caso pior, fazerem ameaças caso vejam o prenome em alguma dessas narrativas.

Estou em Campo Grande MS há quase trinta anos, mas sei que existe outro “José Nunes Pereira Sobrinho” em Londrina PR, outro em Bertioga SP, idem no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro RJ e vários no Nordeste do Brasil. Ou seja, sequer sou dono de meu nome completo, menos ainda do prenome José!...

Mas em consideração a de quem se sinta dono de prenomes, os poucos citados em todas as minhas narrativas são fictícios. Achei por bem também evitar alguns prenomes de falecidos, caso não sejam essenciais, pois e se resolverem “voltar” para questionarem?!...

Aliás, o nome foi a minha primeira aventura. Incomodado em ser chamado de “Zé”, questionei:

– Mãe, com tantos nomes no mundo, por que escolheram José?...

– Não escolhemos. – Ela explicou. – Na verdade, seu pai escolheu “Valtamir”. Mas depois de oito dias de sofrimento na tentativa de parto, com cólicas e contrações infindáveis, até a parteira, dona Rosita, lá da baixada do riacho, ficou desanimada....

– Sua avó Jovelina, – Prosseguiu minha mãe. – também não sabia o que fazer para manter a esperança em nascer vivo. E lá no sítio de seu avô Eurico eu não tinha mais condições de percorrer os vinte quilômetros de carroça naquela estradinha cheia de buracos e lama até o hospital em Sansabel...

– Felizmente minha mãe, sua avó Marcelina, veio nos visitar e contou que sonhara que seu nome era José e que só iria nascer se colocássemos esse nome!...

– Então seria Valtamir?... Ah!... – Exclamei conformado. – José é um nome bonito!... É até bíblico!...

Antes de seguirmos para a estação, o meu pai foi taxativo: Eu deveria embarcar e imediatamente sentar! Não sair do lugar de forma alguma!... O meu tio iria embarcar em Maringá após acomodar a bicicleta e depois de passar a estação de Sarandi ele percorreria os vagões até me encontrar. Era um plano infalível!...

Escureceu. O trem não era rápido. Mesmo assim, logo depois consegui identificar o letreiro da Estação de Marialva e nada de meu tio aparecer!... Achei que ele estivesse a brincar com a minha situação. Sinceramente, não tinha a menor graça!... Por que adulto acha que criança não entende nada ou não tenha sentimentos e pode sofrer qualquer tipo de brincadeira?...

Mas se era um teste de paciência, então paciência. Fiquei a recordar a infância. Lembrei-me do sítio e dos cabritinhos! E da espanhola a me carregar nos braços e estimo depois a delicadamente lavar os cortes. Achei que meu pai me “mataria” por ter quebrado todos os pratos e xícaras do armário!... Mas ele estava tão obcecado com a história do homem do bananal que nem ligou!...

Muito antes disso, na recordação mais antiga, vejo minha mãe lavando roupa numa prancha estirada até ao chão. Uma bacia de alumínio ao lado direito em cima de uma mesinha. Ao redor algumas plantas ornamentais roxas e longas quais pés de milho. Mais à esquerda um pé de pinha. Abaixo um pé de laranja. Eu estou na esquina da casa, com quase dois anos, calmamente sentado num saco branco, sob a sombra do laranjal.


Era essa a calma que eu queria, enquanto o trem seguia em frente!... Mas ao contrário, na escuridão mal dava para ver as poucas moradias em sítios na beira dos trilhos e nada de meu tio!... Passamos a Estação de Mandaguari e foi um sufoco conseguir ler a identificação. Até tive de desobedecer e mudar para o lado direito, pois as estações estavam sempre à direita, exceto a de Sarandi!

O desespero maior era pela incerteza quanto ao nome da estação em que deveria desembarcar, caso o meu tio não aparecesse, ainda mais quando me lembrei de conversas sobre uma sociedade numa fábrica de muros pré-moldados na cidade de Jandaia do Sul!...

Já passara das vinte horas e a aflição era tamanha que todas as memórias sumiram! Minha vida estava restrita ao rigor daquele momento dentro do trem!... Tudo se resumia a dúvida cruel: Deveria descer na próxima estação?...

Pouco depois o trem parou em Jandaia do Sul e eu ainda sem saber o que fazer!... Olhei pela janela e não vi o meu tio. Talvez não seria ali, pois se fosse, certamente ele teria desembarcado. Desço ou não desço?... E se não for Jandaia?... Cheguei a levantar, mas quem primeiro saiu foi o trem!... Então fiquei numa agonia pior a que enfrentara quando acertei o Corcel vermelho, lá em Sansabel!...

Seria Cambira?... Cambé?... Cambará?... A meu ver, os nomes eram tão similares, ainda mais sob o tormento da ansiedade!... Por outro lado, a única certeza era que quanto mais eu seguisse, mais longe estaria de Sarandi!... E isso foi fundamental em minha decisão de descer na próxima estação!...

Quando o trem parou, a curta estação estava bem mais à frente de meu vagão. Não pensei duas vezes. Pulei sobre as pedras ao lado do trilho. O trem deu partida e fiquei na expectativa de ver o meu tio, pois talvez ele não pudesse sair do lado da bicicleta e estava contando que eu fosse esperto o suficiente para descer na estação correta. Mas estava tudo vazio. Ninguém!... Nenhuma outra alma viva!...

E agora?... O que fazer?... Caminhei em direção à estação e lá estava o letreiro: Cambira!... Do lado esquerdo a fraca iluminação permitia ver apenas a ribanceira e plantações de café, então era evidente que deveria subir à direita, onde estavam as casas da cidade!... E após duas ruas encontrei dois rapazes. Pedi ajuda. Expliquei que deveria chegar à casa de uma tia, cujo nome correto eu não lembrava, pois sempre falei o apelido usado em família, mas lembrei-me que ela costurava roupas!...

Eles me levaram à casa de uma Costureira, não muito longe. Batemos palmas. Logo saiu uma gentil senhora e decepcionado com o primeiro fracasso, expliquei a situação. Infelizmente ela não conhecia aquele apelido familiar. Senti um desespero!... E se eu estava na cidade errada?... Seria por isso que meu tio não estava na estação?!...

– Qual o nome de seu tio?... Perguntou a mulher.

– É Ciclano!... Falei cheio de esperança.

– Também não conheço. – Ela lamentou e questionou:

– Qual o sobrenome?...

Poxa vida! Como não pensei isso antes?!... É lógico que as famílias são mais conhecidas do que nomes individuais! De fato, foi só falar o sobrenome e tudo clareou!...

– Ah! Conheço sim! – Falou a Costureira. – Basta seguir essa rua até passar o campo de futebol. Eles moram na terceira casa!...

Agradeci e fui feliz da vida!... Não estava perdido! Aquela era a cidade correta!... Entretanto, logo descobri que não era a casa de minha tia.... Mas sabiam o endereço exato! Conheciam até o apelido! Indicaram o endereço e quase dez horas da noite eu bati palmas na frente da casa de minha tia!...

Ela acordou desconfiada, abriu a porta e exclamou assustada:

– Zezinho?!... É você?... Cadê a Nizita?...

– Oi tia! – Falei eufórico. E rapidamente contei a minha recém-aventura.

– Está com fome? – Ela perguntou ainda incrédula.

– Entra!...

Rapidamente ela esquentou arroz, feijão e carne com batatas! Foi uma das melhores refeições de minha vida! E antes de terminar, irrompeu porta adentro o meu tio e logo depois o meu pai! Eles vieram de ônibus!...

Somente então fiquei sabendo que a estação em Maringá não aceitara embarcar a bicicleta, pois deveria estar encaixotada!... E meu tio pedalou de volta os dez quilômetros até Sarandi na esperança de chegar a tempo, isso com o intenso trânsito na rodovia!... Infelizmente não foi possível e eu já tinha embarcado!... Ah!... Que falta fazia um celular!...

Depois desse dia eu me senti emancipado e pronto para a nova vida no então Mato Grosso! Porém, antes foram inúmeras as aventuras, por exemplo, o código secreto com minha mãe, mas tão secreto que nem ela sabia!... E segundo esse código, toda vez que minha mãe me proibisse enfaticamente de fazer alguma coisa, era para fazer o inverso!...

Foi assim que cai dentro do tacho de gordura quente...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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