quinta-feira, 7 de abril de 2022

03 - A ESTAÇÃO

03 - A ESTAÇÃO

Em 1976 estávamos em Sarandi-PR em visita aos meus avós italianos, oportunidade de rever alguns da galera das algazarras no riacho, nos fundos do sítio de meu avô “Coisão”, lá no “Barraco”, em Sansabel.

Ah!... Saudade dos Natais onde se reunia quase toda a família para falar alto, beber vinho de garrafão no almoço, chocolate quente à noite, comer muito macarrão, carne de frango com polenta e esquecermo-nos do mundo!...

E no meu caso, oportunidade de rever as primas da cidade!... Mas não entendam mal, é que eu fui o único sobrinho por um bom tempo, pois as irmãs de minha mãe tiveram oito filhas, isso sem considerar as muitas primas da família de meu pai. Somente depois meus tios casaram e vieram outros seis filhos.

E naquela tarde estávamos todos felizes na Estação de Trem de Sarandi, à espera da locomotiva que vinha de Maringá e ao que sei iria até Ponta Grossa ou o Porto de Paranaguá.

O esposo da irmã de minha mãe, morador de outra cidade, comprara uma bicicleta, mas teve de ir até a Estação Central em Maringá para embarcá-la. Os tios e as primas estavam ali para rir e cantar, mas apenas eu deveria seguir de trem para a casa desse tio, em alguma cidade antes de Apucarana. Seria a última vez antes de minha família seguir para o Mato Grosso.

Foi nesse dia que descobri que tinha vocação para cantar! Por algum motivo, entre uma risada e outra, cantei: “Lady Laura, me leva para casa,  Lady Laura”. E todos gostaram ainda mais que era um recente sucesso de Roberto Carlos. Então continuei: “me faça dormir, Lady Laura”.

Eu nasci no “Barraco de Zinco” em Sansabel. Mas também tinha morado perto de Cambira, quando tinha entre três e quatro anos. Lembro-me que moravam na casa grande os meus avós italianos, os tios e tias solteiros e outra família de nome estranho. Foi por isso que aos meus pais coube morarem numa pequena e velha tuia de armazenamento de grãos. Mas e daí?!... Estava tudo maravilhoso!...

Mais abaixo da casa grande existia um cercado para porcos, mas ali vivia apenas uma cabrita preta com dois cabritinhos e ela fornecia o meu leite de todo santo dia. Era um gramado fino e alto. Margeando a cerca, bem mais abaixo, chegava a um pequeno riacho e uma ponte que dava acesso a outro sítio com uma carreira de eucaliptos e onde vivia uma mulher benzedeira.

No sítio de meu avô, acima da casa grande tinha uma pequena parreira de uvas e depois uns pés de bananas, só depois o cafezal, difícil de cuidar, pois era um chão pedregoso com uma praga de matinhos roxeados. Acima da tuia estavam muitos pés de manga e ao lado a casa do sítio vizinho de uma velha espanhola.

Certo dia, várias crianças pequenas brincavam atrás da tuia, tanto meninas quanto meninos, mas uma jovem acompanhava e cuidava dos pequenos. O fato é que senti vontade de urinar e fiz ali mesmo, na parede de madeira. Teve uma menininha que também sentiu vontade, mas foi repreendida pela cuidadora, com a alegação de que não poderia em frente de menino. E todos estranharam!...

– É que menino é diferente de menina!...

– Ué?!... Mas não somos iguais?...

– Não é não!... Menina não tem “pipi”...

– Mas como faz “xixi”?... Deixa eu ver!...

E foi assim que consegui a fama de sem-vergonha, por tentar tirar a calcinha de uma das menininhas!... A cuidadora se apressou em contar a minha safadeza. Logo todos comentavam o absurdo atrevimento!... Se nem tinha quatro anos e fazia isso, qual o futuro desse menino?!...

Dez anos depois eu tinha quatorze anos e era um menino muito respeitador!... Na verdade, até cauteloso com esses assuntos. Tanto é assim que não fiz nada quando a jovem garota decidiu tomar banho de mangueira, toda sorridente, nos fundos de sua casa na vila do D. E. R. lá em Sansabel, enquanto eu e o Dedé estávamos bem perto, na trave direita do campo de futebol, a fingir que jogava bola, mas a olhar a menina nua!... E tinha apenas o espaçoso arame farpado a nos separar...

– Doidinha!... – Exclamou o Dedé, morador da vila. – Tem banheiro dentro das casas!... Por que ela toma banho aqui fora?...

Mas voltando aos quase quatro anos, a reação dos adultos com a história da calcinha foi tão intempestiva e o falatório foi tão grande que me deixou temeroso!... Imagino que deva ser assim que se cria um trauma de infância.

Interessante que os adultos também adotam ações temerárias, com consequências piores, mas não são cobrados quais as crianças. Por exemplo, na semana seguinte o meu avô “Coisão” chamou o meu pai e falou:

– Você precisa deixar de ser matuto!... Não vê onde anda sua mulher?... Ela está lá no bananal e você querendo ir pescar?...

Esse dia mudou minha vida. Nunca mais seria a mesma rotina bucólica de criança feliz e amada, pois meu pai jogou a enxada no chão e foi conferir a história!

De fato, tinha um homem a conversar com a Nizita, grávida de sete meses, no bananal!... Ele chegara sorrateiramente de bicicleta e foi direto para o bananal, apesar de ser membro conhecido da família. Quando a Nizita viu o meu pai, imediatamente falou:

– Girso, não é o que você está pensando!...

Muito tempo depois, na páscoa de 2017, dentro do carro na estrada de Tapira PR, a caminho de Sansabel, meu pai falou:

– Nem sei se convém contar essas coisas. Foi há tanto tempo!...

– Bem... – Argumentei. – Todos já morreram...

De fato, minha mãe falecera em 2013 e o meu avô na década de 1980. Falei de inocente. Nem no maior devaneio poderia imaginar que ele iria expor esses acontecimentos de 1965 no bananal!...


E de repente, tudo fez sentido!... Finalmente eu compreendia tantas brigas, cenas de ciúmes, até as origens das agressões que sofri em Monte Castelo em 1971!...

É lógico que a Nizita explicou que apenas estava tentando resolver um conflito familiar que envolvia outra irmã. Além do mais, estava grávida, portanto, jamais iria fazer tal traição, mas meu pai não quis saber.

O tal sujeito imediatamente foi embora para Cambira e meu pai voltou para a tuia, pegou as poucas economias que trouxera do “Barraco de Zinco”, preparou a charrete e foi atrás!... Não encontrou o parente, mas comprou um revólver e voltou para o sítio a jurar matar o sujeito!...

– Já passou Santa Mônica?... – Perguntou o meu pai em 2017 dentro do carro, após voltar de um estranho transe. Passáramos Santa Mônica e já estávamos perto do ramal 7, quase a chegar em Sansabel. Mas as lembranças foram tão intensas que ele simplesmente não viu!... E eu estava estupefato!... Aquilo sim era escândalo, não a minha inocência em querer tirar a calcinha de uma menina por pura curiosidade infantil!...

Em 2017, durante o tal transe, meu pai também falou sobre um primo da Nizita e que circularam conversas infundadas de que tal primo seria pai de um de seus cinco filhos, mas meu pai explicou que não poderia ser, pois esse primo era estéril, conforme exames feitos em 1976, justamente nessa visita antes de nossa mudança para o Mato Grosso.

Contou que esse primo foi para Curitiba e se casou com uma paraguaia muito bonita e não teve filhos, por fim, mudou-se para Campo Grande MS. Depois fiz pesquisa e de fato existe registro do sepultamento no Cemitério Cruzeiro do Sul, quadra 92, lote 92.

E lá em 1965, o meu avô “Coisão” se deu conta da enorme encrenca que provocara!... Provavelmente queria apenas resolver o envolvimento da outra filha sem precisar expor a situação. Não imaginara que o meu pai, o mineirinho sossegado, teria tal reação!... A solução para resolver a enorme confusão foi vender tudo em Cambira e voltar para a região do “Barraco de Zinco”, onde vendera um sítio de vinte hectares e menos de um ano depois, iria voltar para comprar outro de dez!...

Dias depois, ainda sem entender tanta movimentação, notei o cobiçado martelo de meu pai em cima do armário da cozinha. Alguns utensílios foram encaixotados para a viagem, mas a maioria ainda estava nas prateleiras, entre eles, uma tigela abaixo do martelo!...

Era muita tentação aquele objeto tão requisitado ali quase ao meu alcance!... Subi na cadeira, passei para a borda do armário, estiquei-me todo para alcançar o martelo e de repente, o armário caiu!... Foi um barulho medonho de pratos, xícaras e os vidros das portas a quebrarem no chão!... Uma lasca de vidro entrou em minha perna!... De tudo que estava no armário, sobrou intacto apenas a tigela, pois caíra em meu corpo!...

Apesar da dor e sangramento, fugi para o mangueiral. Sentei embaixo de um troco e fiquei a chorar baixinho!... Mal vi o vulto da espanhola a me pegar no colo, pois logo desmaiei!... Essa foi a última lembrança daquele sítio.

Na estação, nada de chegar o trem. E diante desses e outros acontecimentos, naquele momento eu queria apenas a simbólica inocência perdida de criança feliz, a achar que todos fossem iguais!... “Me conta outra vez, Lady Laura”...

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Do livro: MEMÓRIAS do Menino Esquecido.

ISBN: 978-65-00-38553-3

Registro Autoral CBL - DA-2022-017822.

© Sobrinho, José Nunes Pereira. – Todos os direitos reservados, proibida a reprodução parcial, total ou cópia sem permissão prévia do Autor ou Editora.

 

Se quiser, por favor, compre o livro. Abaixo o link:

MEMÓRIAS do Menino Esquecido, por José Nunes Pereira Sobrinho - Clube de Autores 

 

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